Ana. Sem Título – filme de Lúcia Murat

O talento de Lúcia Murat foi construído com sofrimento. Sobrevivente dos anos de chumbo (onde foi militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro), permanecendo presa por anos durante a ditadura militar brasileira, suas experiências e memórias nos brindaram com filmes premiados do naipe de Quase Dois Irmãos (2004) e Uma Longa Viagem (2011), habitats sensoriais imprescindíveis para quem quer acessar, relembrar ou entender olhares dos que sentiram na pele o período de opressão.

E agora ela nos entrega Ana. Sem Título, um pseudodocumentário que pretende traçar a trajetória de uma certa Ana, citada em cartas trocadas entre mulheres militantes espalhadas pela América Latina durante o período que vai do fim dos anos 1960 e boa parte da década seguinte.

Ana. Sem Título
Cena de Ana. Sem Título

Ana. Sem Título

Motivada pelo acesso a tais cartas através da Exposição “Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985” (que este escriba teve a sorte de visitar em 2018 na Pinacoteca da Cidade de São Paulo), Stela (Stella Rabello) obstina-se em descobrir quem foi e que fim levou esta Ana sem sobrenome (fazendo sentido o título do filme), e carregando em sua saga a própria Murat, um captador de imagens e uma captadora de som. Entrega-se então a uma epopeia, visitando lugares sombrios e pesados, guiada pelas cartas que leu.

É curioso como Murat participa da história que cria se colocando no lugar de quem é levada pela protagonista, sendo ela própria, no fundo, quem tramou tudo, uma espécie de presença divina, impassível e controladora. Ela é o estopim da fúria questionadora e angustiada de Stela, e suas intenções ficam claras quando, em dado momento, pergunta-se por que Stela sofre, se sabia o que encontraria. Tirar a nova geração da zona de conforto é a proposta.

Ana. Sem Título

Ficção e realidade

Recomendo a quem assistir que se entregue ao prazer de estar presenciando um documentário real, pois só assim pode-se acessar o peso das falas de sobreviventes e testemunhas que realmente viveram o momento histórico e que aparecem com suas falas calmas e contundentes durante todo o filme. Esse “panteão”, sempre com seus olhares complacentes, permanece tranquilo enquanto assiste Stela ter os nervos progressivamente deixados em frangalhos, num rito de passagem que o filme quer que a protagonista passe.

Interessante também notar o ano em que a Pinacoteca ofereceu a exposição que é o ponto de partida de Ana. Sem título: de maneira profética, a mostra ocorreu imediatamente antes da reação de um “espírito” social e político que víamos adormecido, mas não de fato morto. Como resgate de sensações que não podem ser esquecidas, este longa se torna ainda mais urgente.

A proximidade com o atual estado de coisas gera slams como acontecem em dois momentos marcantes; além disso, a proposta de se abordar a história vista de baixo, a partir de registros de quem muitas vezes não teve a identidade documentada, dá veracidade à busca arqueológica de Stela. Assim como um Indiana Jones, essa busca deve ser mesmo por vezes ansiosa e tensa.

Ana. Sem Título

Sentir na pele

Com a ressalva da composição cênica no qual a busca por Ana termina, construída para gerar poesia imagética mas que soa inverossímil, e da maneira muito superficial e mal explicada que o roteiro cria para chegarmos a esse local (destoando de todos os outros espaços geográficos que são exibidos nos 110 minutos e que se conectam e são explorados com calma), a ideia geral é bastante inventiva.

Claramente, Murat usa o cinema para ab-reagir. À la Stanilavski e o famigerado Actors Studio (cuja proposta em particular sou crítico; podemos discorrer sobre em outra oportunidade), ela sentiu na pele o que cria e exibe. Não precisava ter sido assim. E não precisa ser mais.

Ana. Sem Título

Nome Original: Ana. Sem Título
Direção: Lúcia Murat
Elenco: Stella Rabello, Felipe Rocha, Renato Linhares
Gênero: Drama
Produtora: Taiga
Distribuidora: Imovision
Ano de Lançamento: 2020
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