Entre Facas e Segredos – Agatha Christie para cinéfilos

Houve uma época da minha vida em que eu fiquei viciado em Agatha Christie. Eu devorava seus livros, um após o outro, de forma tão obstinada que eu até enjoei (provavelmente, porque na metade dos livros eu já conseguia descobrir o assassino). A experiência de assistir Entre Facas e Segredos (uma razoável tradução para o intraduzível título original Knives Out), o novo filme de Rian Johnson que estreia dia 12 de dezembro no Brasil, foi o mais próximo que qualquer outra obra me colocou dessa sensação de ler um livro de Agatha Christie.

Como em qualquer boa história de mistério, quanto menos se sabe do enredo, melhor a experiência. Então, a recomendação paradoxal aos fãs do gênero é parar imediatamente de ler esta crítica. Se puder, ignore inclusive o trailer do filme; e vá para o cinema imediatamente assistir essa maravilha, que vocês não vão se arrepender.

Isso porque, mesmo seguindo aquele enredo básico de histórias de mistério, ele é extremamente bem construído. Usando de forma particularmente brilhante o formato do cinema, ele entrega algo que seria muito difícil de reproduzir em mal-traçadas linhas.

Daniel Craig e Ana de Armas em cena de Entre Facas e Segredos
Daniel Craig e Ana de Armas em cena

Entre Facas e Segredos – lost in translation

Agatha Christie sempre teve um jeito único de escrever histórias de detetive e mistério, colocando motivações coerentes para o crime em cada um dos personagens, preparando cuidadosamente a cena de assassinato, falando de venenos e compostos químicos, criando um detetive que não parece ter qualquer outro objetivo na vida a não ser solucionar o caso e adicionando detalhes minúsculos que parecem peças soltas em um quebra-cabeças, mas que possuem cada um seu propósito.

O filme é a melhor reprodução de uma obra dela por conta disso: ele entende que até mesmo a forma de falar uma frase pode ser a solução de um mistério. Em “Convite para um Homicídio“, o detetive descobre o assassino pela ênfase que um dos personagens dá a uma palavra em uma determinada frase.

Nesse sentido, a recomendação também é assistir ao filme legendado, já que cada palavra dita têm o seu lugar bem colocado e trocadilhos podem se perder na dublagem. Até mesmo o público que não entende inglês acaba perdendo uma ou outra referência por conta da adaptação. (vende-se este espaço para propaganda de alguma escola de inglês)

A ratoeira

A peça teatral mais longeva da história também é de autoria de Agatha Christie: A ratoeira, em exibição desde 1952 em Londres. Assistir à peça com alguém que também seja fã do gênero é particularmente delicioso. É possível aproveitar o intervalo entre os atos e discutir as teorias. Quem matou? Por quê? De que forma?

Isso é uma coisa que até dá pra sentir falta ao assistir Entre Facas e Segredos, mas só porque o filme é tão bem feito que sobra vontade de pausar e brincar de Scotland Yard. “Esta casa mais parece um tabuleiro de Clue“, um dos personagens diz a certa altura, numa espécie de meta-piada. Sim! Parece! É como se o time de design de produção simplesmente não conseguisse se conter e, dessa forma, encheu os cenários com todos os objetos, peças e parafernalhas que eles tinham à disposição.

O diretor e roteirista Rian Johnson soube ousar com o gênero como ninguém, jogando pistas e dicas o tempo todo, para que a audiência possa curtir a ideia de tentar desvendar o crime também. Ele cuidadosamente manipula o que cada personagem sabe, o que a audiência sabe, e até o que a audiência sabe que sabe. Até as roupas que os personagens vestem parecem tiradas de desenhos de um jogo de detetive.

Ana de Armas em cena de Entre Facas e Segredos
Ana de Armas

Coronel Mostarda com o candelabro

Ah! Os personagens! Cada um deles têm o seu propósito, suas motivações, suas ambições e suas escrotices. E, mesmo sendo muitos personagens, nenhum deles fica sobrando.

O filme tem os méritos também de ter selecionado um elenco absolutamente impecável, incluindo o atual James Bond, o eterno Capitão América, a moça suicida das fitas, a esposa do Schwarzenegger em True Lies, o substituto do Kevin Spacey, o General Zod e a futura Marilyn Monroe. A lindíssima Ana de Armas, aliás, consegue ser, no meio dessa constelação, o maior destaque da película.

Sou fã da moça desde quando saí da sessão de Blade Runner 2049 pensando “por deus, quem é aquela projeção-robô absolutamente maravilhosa?”. Assim, é uma imensa satisfação vê-la dominar a tela, na melhor atuação da sua carreira até o momento. Méritos novamente do roteiro, que finalmente coloca Ana em um papel “de verdade” e ela mostra que tem tudo para ser uma das grandes estrelas do cinema nos anos vindouros.

Jamie Lee Curtis

Rian Johnson, me engravida!

A direção de Rian Johnson é outro destaque imensamente positivo. Aqui vale um disclaimer: eu sou fã de Rian Johnson desde Breaking Bad – mais precisamente desde o capítulo “Ozymandias”, que é a melhor 1 hora que a televisão mundial já produziu. Eu amei a forma como o episódio me deixou tenso e aflito durante toda sua extensão: eu o assisti me segurando na ponta do sofá, meu focinho a poucos centímetros da tela do computador, praticamente sem piscar.

Também faço parte da metade da população mundial que gostou de The Last Jedi, apesar de concordar com muitas das críticas referentes às falhas de roteiro. Mas eu lembro da sensação que o filme me causou na sala de cinema: finalmente eu estava vendo um Star Wars com uma história original, completando de forma definitiva o arco de personagens tão amados. As lembranças (minhas em particular) que eu tenho do filme são positivas por conta da forma como ele me fez sentir no cinema.

Cinco estrelas!

E talvez seja por isso que Entre Facas e Segredos mereça as cinco estrelas desta crítica. O filme é bem dirigido, bem editado, com uma trilha sonora bem colocada, muito bem escrito (tem um pequeno furo apenas, facilmente ignorável), com atuações incríveis e um final completamente satisfatório.

Mas ele merece a nota máxima pelo sentimento que me causou: durante essas duas horas, eu voltei a ser aquela criança nerd, sem boletos pra pagar, sem preocupações com a cotação do dólar, sem todo esse terrível conhecimento de como o mundo é injusto e a vida é difícil; aquele fedelho deitado na cama depois da escola devorando de forma doentia um livro da Agatha Christie. Por duas horas, eu estava de novo só preocupado em descobrir quem matou Harlan Thrombey. E, sem querer me gabar, eu descobri o final da história na metade… Perdi a grande surpresa, mas a culpa é minha, que aprendi com a melhor autora do gênero.

Entre Facas e Segredos

Nome Original: Knives Out
Direção: Rian Johnson
Elenco: Daniel Craig, Chris Evans, Ana de Armas, Jamie Lee Curtis, Toni Collette, Christopher Plummer
Gênero: Comédia, Crime, Drama
Produtora: Lionsgate
Distribuidora: Paris Filmes
Ano de Lançamento: 2019
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3 Comentários

  1. Quem fez a tradução errou no nome do jogo, chama-se Go e não Gamão. O objetivo deveria ser instruir.

  2. Por acaso o furo foi o champanhe que a Marta diz que tomou na festa, mas quando vemos as cenas percebemos q ela recusou? Porque isso não sai da minha cabeça kkkkkkkk

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