Nove Dias

Num universo isolado (de fortes contornos kardecistas), almas recém-geradas participam de um processo seletivo para terem acesso a encarnar. Acompanhamos Will (Winston Duke), um dos entrevistadores, durante nove dias em que duram as etapas do teste de seleção, tentando escolher o melhor candidato dentre alguns que lhe são designados.

Atormentado pela morte de uma das pessoas escolhidas em processos seletivos anteriores (que Will acompanha em estilo POV, aprisionado por uma compulsão que seu suéter listrado só reforça) e fustigado por uma das novas candidatas, Emma (Zazie Beetz), o entrevistador desvela ante nós todas as marcas de sua
existência anterior e presente.

Esta é a premissa deste excelente debut de Edson Oda (em seu primeiro longa, mas conhecido por Malária, um curta de 2013), um filme que o próprio diretor brasileiro confessa ter sido influenciado por filmes orientais. E de fato, especialistas em cinema japonês vão encontrar Mizoguchi e os primeiros Kurosawa representados aqui, talvez não diretamente, mas através de diretores que vieram após eles.

Nove Dias

Nove Dias

Um filme com cara de Festival de Sundance (onde ganhou prêmios para Direção, além de ator e atriz para Duke e Beetz no Festival de Denver), a lentidão com que as coisas se sucedem dão tempo a quem assiste de ir aos poucos entrando nas sensações que os personagens têm, cada um com suas próprias motivações e tormentos.

Apoiado por uma trilha sonora de qualidade (a cargo de Antonio Pinto), o filme é árido como um episódio de Black Mirror: quase todo o tempo, há apenas um ou dois personagens em cena, em espaços internos apertados ou em planos abertos e gelados. Almas penadas passam desoladas e o tom acinzentado desse limbo em que a ação se passa deixa tudo muito triste e convidativo à introspecção.

Como todo bom filme, a absorção da obra pelo espectador se dá de forma pessoal: Emma, por exemplo, quase como uma Lilith, atua como um diabo, questionando e tirando da zona de conforto os que estão ao seu redor. Ela se recusa a aceitar passivamente as provas pelas quais tem que passar, o que deixa um forte sentimento de desconforto, apoiado pela ótima atuação facial de Beetz, que promove transtorno sempre com um olhar ameno. Nesse sentido, o diretor Edson Oda comenta:

Ver as diferentes leituras de Nove Dias é uma das coisas mais gratificantes em se fazer um filme. Acho que um filme só passa a existir de verdade quando entra em contato com o público, e saber que tantas pessoas têm interpretações diferentes me faz acreditar que há diferentes versões do filme vivas por aí. E acho isso fenomenal porque em certo momento o filme não é mais meu, mas sim de todos. Todos têm uma autoria sobre ele porque investiram seus próprios sentimentos no filme, e acho isso incrível.

Nove Dias

Quando questionado sobre o existencialismo exercitado por uma nova geração de autores, ele prossegue:

A pluralidade de vozes é sempre importantíssima porque cada pessoa é única e tem uma visão única da vida. Acho que temos que sempre dar vozes a novos artistas, principalmente quando trazem um ponto de vista pessoal e íntimo. A geração mais antiga não viveu o que esta geração nova está vivendo, então cabe a essa nova geração retratar a nova realidade de um ponto de vista mais atual. Em outras palavras, a geração anterior educa a geração mais nova, e vice-versa.

Há um ar de Asas do Desejo aqui: observar as vidas mundanas das pessoas que passaram por aquele espaço transforma os entrevistadores em anjos da guarda, porém impotentes frente a um não-destino, já que o livre arbítrio entre os encarnados impera com toda a sua potência e seu peso excruciante. Entretanto, aos desencarnados sobra o castigo ter suas “vidas” (ou “não-mortes”) determinadas por algo maior e que não vemos: nesse sentido, a vida é o que devemos desfrutar, pois a pós-vida carrega mazelas que não estavam no script.

Uma vaga para uma nova vida

Alguns efeitos ondulantes na areia e em cenas de água do mar tornam tudo mais etéreo; em acréscimo, os “presentes” que os candidatos eliminados recebem são de tocar o coração, mas ao mesmo tempo servem para aplacar a dor de quem os dá ou então transferem um ar de desespero ao contexto geral.

Edson Oda reside nos Estados Unidos e lá desenvolveu esse projeto, que possui elementos de Dark, das fantasmagorias do cinema clássico japonês (impossível não remeter ao tempo que resta para os desafortunados de O Chamado), dos trabalhos introspectivos de Wenders e também de Malick. Como um diretor da nova geração, seu trabalho consegue dialogar bem com as produções modernas que, através de
roteiros intrincados, lidam com o existencialismo com uma abordagem tecnológica, um dos marcos das novas produções e certamente o maior fruto que a época em que vivemos deixará para a posteridade da produção artística.

Precisamos sobretudo valorizar essa atual tendência, porque ótimos resultados podem ser costurados e
estão sendo alcançados. Recomendo. Nove Dias é um ótimo filme.

Nove Dias

Nome Original: Nine Days
Direção: Edson Oda
Elenco: Winston Duke, Brandy Pitcher, Benedict Wong, Bill Skarsgård
Gênero: Drama, Fantasia
Produtora: 30WEST
Distribuidora: Sony Pictures
Ano de Lançamento: 2020
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