Undone, mais um acerto original da Amazon
Quando a série Undone foi anunciada, ela chamou minha atenção logo de cara, mesmo antes de ter qualquer detalhe da trama, do casting ou do formato. Pois o que me conquistou imediatamente foi fato de ser uma criação da dupla Raphael Bob-Waksberg e Kate Purdy, roteiristas de Bojack Horseman, uma das melhores séries em produção na atualidade.
A maior marca de Bojack é certamente seu roteiro afiado. Os personagens são interessantes, as piadas são engraçadíssimas, os trocadilhos são os melhores da televisão. A produção criativa da série é tão irretocável que compensa o visual feio e a animação feita em Flash (literalmente).
Já já eu falo sobre Undone
O que faz dela tão especial, porém, é seu surpreendente apelo emocional: uma história sobre um cavalo que era uma estrela de uma sitcom nos anos 90 é, sem dúvida, a produção artística que mais me atinge emocionalmente (entre livros, séries e filmes), tratando no decorrer de suas cinco temporadas até agora, temas como depressão, assédio sexual, polarização política, relações fraternas e problemas psicológicos.
Problemas psicológicos, aliás, que são tratados de forma como nunca antes. Dois dos episódios mais memoráveis ocorrem na quarta temporada. Em um deles (S04E02 “The Old Sugarman Place”), Bojack se isola numa antiga casa de veraneio de família e a história intercala entre presente e passado, mostrando um pouco dos antepassados do protagonista; em outro (S04E11 “Time’s Arrow”), todo o episódio se passa dentro da cabeça de um personagem com Alzheimer, em um dos melhores retratos já expostos de como a doença se manifesta.
Uma característica em comum entre esses episódios, além do enredo não linear e da relação íntima sobre como funciona a mente humana é que, em ambos, o roteiro é assinado por Kate Purdy – a criadora de Undone que eu citei lá em cima – e isso dá uma ideia bem próxima do que esperar dessa série.
Is this a dream?
Na série, a personagem principal é Alma Winograd-Diaz (Rosa Salazar, de Alita), que levava uma vida tão normal quanto possível, mesmo consciente de seus próprios problemas psicológicos, até que ela sofre um acidente de carro e passa a ver e conversar com seu falecido pai (Bob Odenkirk, o eterno Saul Goodman de Breaking Bad), que passa a treiná-la para que ela consiga viajar no tempo dentro de sua própria mente e descobrir quem o matou.
Essa maluquice é só a base condutora que leva a história pelos oito episódios de meia hora da primeira temporada. Contar qualquer coisa além disso pode ser spoiler.
Undone, ao contrário de Bojack, não é uma série cômica. Porém, em compensação, ela também não é nem de perto tão depressiva – ainda bem, eu diria. O ponto mais surpreendente da animação é certamente o seu estilo. Usando uma técnica de rotoscopia semelhante à empregada no filme de Richard Linklater, A Scanner Darkly, a série combina lindíssimas pinturas a óleo com efeitos 3D para criar as viagens malucas dentro da cabeça da personagem. A técnica também permite que a interpretação dos atores seja plenamente reconhecível por trás da animação – e com isso eles conseguem efetivamente passar toda a emoção de seus personagens.
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Dificilmente uma série desse porte, com esse tema e com essa qualidade seria produzida em qualquer outra época da história. O efeito colateral mais positivo dessa guerra dos streamings é certamente esse conteúdo único que grandes empresas começaram a incentivar. Undone é um milagre de nossa época. E uma das coisas mais lindas que a televisão já produziu – qualquer superlativo usado neste texto é merecidíssimo. A Amazon acertou nessa.
Vou assistir!