Sorte – Um Caso de Estupro, livro de Alice Sebold
Um estupro narrado em primeira pessoa
Sorte – Um Caso de Estupro, na realidade, é a autobiografia da autora Alice Sebold (que posteriormente escreveu Uma vida interrompida: Memórias de um Anjo Assassinado).
O livro começa em 1991, quando Alice, então aos 17 anos, é atacada e estuprada dentro do campus da faculdade. Embora Alice ligue para a polícia imediatamente, e faça os exames necessários, o estuprador não é preso. Mais tarde, ela até mesmo encontra com ele na rua.
A partir daí acompanhamos sua espera de que seu estuprador seja finalmente preso, ao mesmo tempo em que ela tenta superar o trauma que viveu.
Uma visão diferente
Alice diz que começou a escrever o livro para abrir os olhos sobre o estupro, afinal, ela conhece diversas histórias parecidas com a sua. Mas mesmo assim, só a palavra “estupro” é um tabu. Na concepção da autora, deve-se falar mais sobre o assunto se quisermos combater o assunto.
Ela também diz que queria finalmente tirar tudo aquilo das costas, pois sua própria história estava afetando a história da protagonista de Uma vida interrompida: Memórias de um Anjo Assassinado. Fica claro para o leitor que o estupro foi um trauma enorme na vida de Alice, como não poderia deixar de ser. No entanto, o livro não é narrado de maneira triste. Nem mesmo parece um livro de autoajuda à vítimas de estupro.
A autora é até um pouco irônica em relação a tudo que acontece, na medida do possível, é claro. Para o leitor, fica a sensação de que sendo uma pessoa bem racional, a ironia parece a única forma que Alice tem para lidar com tamanha violência que sofreu quando ainda era jovem, inexperiente, e só tinha boas expectativas da vida.
Depois do trauma
No entanto, Alice cresce depois do trauma, da pior maneira possível, é claro, mas cresce. É interessante ler o relato de uma mulher que passou pelo que ela passou. Não apenas o estupro, mas também a busca pelo criminoso, o encontro com ele no meio da rua, os diversos julgamentos e o fato dela ter continuado a frequentar o campus, mesmo com as fofocas e com os seus próprios fantasmas. E no fim, se tornou uma escritora.
Apesar da ironia, que parece fazer parte da autora, o assunto é tratado com todo o respeito necessário. Isso faz de Sorte – Um Caso de Estupro um livro que discute um tema importante e necessário do jeito mais visceral possível: do ponto de vista da vítima.
Sorte?
Uma das coisas que mais causa estranhamento em Sorte – Um Caso de Estupro é justamente o nome do livro. Como que a autora pode relacionar sorte com o seu próprio estupro?
Ficamos sabendo ao longo da leitura que a palavra “sorte” faz referência ao que o policial que atendeu a ocorrência falou para Alice: “você tem sorte de ter sido só estuprada e não estuprada e morta”.
A frase soa extremamente sem coração ou consideração para qualquer pessoa que não está naquela situação, mas não foi tão absurda para Alice. O policial claramente queria amenizar o sofrimento da jovem, mas o fez da maneira mais errada possível.
Sorte – Um Caso de Estupro
A frase não ameniza o sofrimento da vítima de estupro, mas ameniza o estupro em si, ignorando que Alice iria carregar cicatrizes daquela primeira experiência sexual terrivelmente violenta para o resto da vida. Mas um dos pontos interessantes do livro é que ele traz isso à tona. O policial, embora envolvido por um ambiente onde esse tipo de crime é comum (o estupro e o estupro seguido de morte), também está inserido num ambiente machista e um mundo machista, talvez ele de fato não consiga conceber todo o mal que um estupro pode trazer e talvez ele ache que ser estuprada não é tão ruim quanto morrer.
O livro traz à tona o machismo das forças policias, que supostamente deveriam ajudar Alice e de todas as outras pessoas que a cercam que se perguntam o que ela fez para ser estuprada ou por que ela andava à noite em um lugar tão deserto.
A própria Alice diz que na hora, a frase do policial não pareceu absurda ou machista para ela, já que ela mesma contradiz muitas mulheres que dizem que preferem morrer do que serem estupradas. A autora diz que durante o estupro ela só pensava que faria qualquer coisa para não morrer, então, quando ela sai viva dessa experiência, ela também se sente com sorte, mesmo que ela tenha que lidar com isso por muitos anos depois.
Depois do livro
A obra não vai muito além dos acontecimentos que circulam o estupro de Alice. A acompanhamos nos momentos fatídicos e em tudo que se decorre depois disso. O livro, no entanto, tenta abarcar um pouco do que aconteceu depois que o estuprador já tinha sido o preso. Assim, acompanhamos Alice enquanto ela tenta superar o que aconteceu e começa a travar outras relações. Além disso, conhecemos outras pessoas que estavam na vida dela naquele momento.
Sorte – Um Caso de Estupro é um livro pesado que narra em primeira pessoa um estupro vivido pela autora. Sem meias palavras, de maneira crua e sem interrupções. Estamos com Alice do momento em que ela anda no campo, até chegar no dormitório e ligar para os pais. Por isso, ele talvez não seja indicado para todo mundo.
O tema é pesadíssimo e a maneira como ele é narrado torna essa sensação ainda maior. Por outro lado, também é essa narração tão colada na vida de Alice que faz o leitor se ver dentro daquela cena. E, consequentemente, entender todo o terror que ela passou. Quando a gente compreende pelo que Alice ou qualquer outra vítima de estuprou passou, fica mais fácil discutir o assunto.
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O livro foi publicado em 1999, mas é cada vez mais relevante, especialmente nos dias de hoje. Afinal, cada vez mais pessoas começam a falar sobre o assunto. Sebold certamente foi uma pioneira, soltando ao ar livre uma história tão pesada e tão significativa em sua vida, numa época em que não era de praxe falar sobre isso.
O livro permanece como uma obra importante que nos coloca no lugar da narradora. Por mais terrível que isso seja, a obra nos dá uma visão maior do mundo, permitindo que haja a discussão de um assunto tão importante.