A Luneta Ambar: Fronteiras do Universo 3, de Philip Pullman
Depois de um 1º livro (A Bússola de Ouro), que é um ótimo e redondo início para uma série fantástica; e de um 2º livro (A Faca Sutil), que não só funciona como transição e apresentação de novas figuras, como também é um belo soco no estômago; o 3º e último, A Luneta Âmbar, assume um tom mais pesaroso e melancólico, que não tem pressa em explorar tudo o que precisa para justificar sua conclusão, a medida que desenvolve um crescente de tensão e espionagem pra lá de bem-vindo.
Por outro lado, este é o livro que mais sofre com a tradução também. Enquanto que os dois primeiros são traduzidos por Eliana Sabino, que tinha encontrado a voz ideal para Lyra, entre sua inocência e seu cinismo peculiares, a última obra ganha tradução de Ana Deiró, que não comete nenhum grande pecado, a não ser justamente na voz da protagonista, tornando-a mais brega e até um pouco tonta. O maior problema, certamente, se dá no uso abusivo da frase “de modo que” (ou “de maneira que”), que aparece na voz de pelo menos quatro personagens enquanto dialogam, ou até mesmo seguidamente em um parágrafo atrás do outro, mais especialmente nos capítulos voltados para a dupla principal, o que quase arruína a leitura. Verificando agora, a antiga Objetiva, agora Suma de Letras em sua nova versão de capas inferiores, não se preocupou em refazer a tradução, mantendo as mesmas tradutoras, mas alterando tristemente dæmon para dimon, e avantesmas-dos-penhascos para espectros-dos-penhascos (espectros na história são outras criaturas, diferente dos avantesmas). Por isso, se possível, procure ler as versões antigas, que tem as capas mais belas e elementos gráficos entre os capítulos que colaboram para uma maior imersão nas aventuras.
Will, de longe um dos melhores personagens de toda a literatura, segue sendo sensato, frio e feroz em sua busca por Lyra (capturada pela mãe Srta. Coulter e levada para cavernas no Himalaia), auxiliado por dois curiosos e interessantes personagens, os anjos Balthamos e Baruch. Do lado de Lorde Asriel, além de alguns outros reis e regentes, temos também os eficientes galivespianos, criaturas minúsculas como fadas, que são fundamentais no enredo em mais de um momento. Em paralelo a isso, acompanhamos a Dra. Mary Malone descobrindo um novo mundo, quase paradisíaco, e uma poderosa e assustadora bomba criada pelo Magisterium, com uma mecânica própria bastante inventiva por parte do autor, além de outros elementos, como a reconstrução de um objeto de maneira muito crível, a descida agoniante ao Mundo dos Mortos, a batalha entre fantasmas e espectros, a criativa Nave da Intenção e o uso cuidadoso sobre a figura do Regente Metatron.
Pullman atinge o ápice no último livro em suas ideologias ateístas (não anti-Deus, que isso fique claro, mas anti-instituições religiosas, o que é bem diferente – mas também é mais do que isso e explico mais abaixo), de uma maneira professoral e genial. Se antes ele apenas pincelava as premissas, aqui ele as expõe sem medo e faz isso do jeito certo, usando Mary Malone em maior parte pra tal fim.
E ainda que o mundo dos mulefas forneça as passagens mais chatas de todo o livro (e mais de uma vez) – o autor perde a mão ao se deslumbrar com as ideias de uma nova raça, quase abstrata de tão diferente de tudo o que podemos conceber –, ao mesmo tempo entendemos onde ele quis chegar com tudo aquilo. Ele precisava apresentar uma nova raça, um novo meio de vida, com uma geografia própria, para que o lado cientista (curioso por conhecimento como só um cientista consegue ser) de Mary levasse a criação da luneta, de ela compreender o que está acontecendo com a evasão do Pó e para que, em um novo contexto, ela pudesse servir como a “Serpente” – e diferentemente do que se possa interpretar, sua premissa é apenas falar sobre o amor (e aflorar isso no casal pré-adolescente) e principalmente sobre conhecimento. Afinal, não temos aqui uma guerra entre o bem e o mal, mas sim sobre a ignorância perpetuada pela igreja (de qualquer religião e de qualquer mundo) contra o conhecimento que a humanidade deveria obter (um dos objetivos de Asriel, em sua jornada trágica). Na Bíblia, quando Adão e Eva comem da maçã oferecida pela Serpente, eles estão obtendo o conhecimento que Deus lhes proibiu, para que vivessem na ignorância. O pecado mortal deles foi assumir as rédeas da própria vida, veja só.
E todo o espírito dessa percepção da Criação, juntado a paixão de Pullman pelo Paraíso Perdido de John Milton ou das obras de William Blake, fizeram com que ele traçasse todas as estruturas das Fronteiras do Universo, fechando todas as pontas soltas da narrativa, apresentadas desde o primeiro livro.
Pullman também evita os clichês óbvios e não segue uma estrutura básica (que ele já havia quebrado na segunda obra), dando aos protagonistas uma anti-jornada, que tem pelo menos dois grandes momentos (e não sei se seria correto o uso do “clímax” para tais cenas: como a sequência que antecede a explosão da bomba; e a luta final contra Metatron). Por isso, mesmo após essas situações, a história ainda tem muito para contar, sem pressa, mas cativante, em um final emocionante de um jeito sincero, que funcionou para mim.
A despedida dos dæmons é sim de cortar o coração, mas é no desfecho, com a separação do amor por um motivo muito, muito maior e nada piegas, que faz com que desabemos. O autor sabe equilibrar as sensações humanas e não tem medo do tom fabulesco que o romance do casal protagonista se desenvolve, afinal é assim mesmo o primeiro amor.
Para fechar, entre várias cenas maravilhosas, ficam aqui meus aplausos para o Fim da Autoridade. Algo sutil, meio de qualquer jeito, escrito daquela forma de maneira proposital, como se fosse um acidente ingênuo de duas crianças que só queriam ajudar. Singular e único, um dos grandes momentos da literatura fantástica. E a vitória do Conhecimento, afinal.
A Luneta Âmbar
A Luneta Âmbar peca com longos capítulos de deslumbramento científico, mas equilibra na qualidade de sentimentos sinceros que fundamentam tudo o que Philip Pullman quis transmitir desde o começo. Não a toa, a trilogia Fronteiras do Universo é a minha série de livros predileta de toda a vida. Mal aí, Tolkien.