Barba ensopada de sangue
Barba ensopada de sangue, do Daniel Galera, trabalha com robustez 3 personagens: o protagonista, a cadela e a cidade. Num sentido muito pessoal, este best-seller da Cia. das Letras me fez olhar para o espelho em algumas cenas aqui e ali e me deixou arrepiado, mas não vem ao caso. Barba embala o leitor e o joga dentro de Garopaba, a cidade-personagem. Entre quatro paredes, o leitor assiste de perto essa jornada pessoal, crua e nua, onde não há equilíbrio porque não tem essa necessidade. Tudo é muito real, crível e possível. Os personagens sentam ao seu lado, você bebe uma cerveja com um velho, conversa com uma criança, briga com um surfista, nada no mar gelado, sente os odores dos entornos do balneário, mastiga uma empada, percebe a areia rostindo entre os dedos dos pés, ouve os latidos próximos.
O livro é carregado de uma experiência de vida muito peculiar e particular e ainda que Galera não assuma, percebe-se no enredo um desabafo de mágoa passada, uma via de escape para opiniões existencialistas, de livre-arbítrio x destino, quase como se a obra fosse uma maneira dele exorcizar fantasmas antigos numa fábula bem contada. Nunca é revelado o nome do protagonista que, mais do que uma casca pro leitor é a casca do autor, mas não vem ao caso.
Maneira bem interessante é como Galera trabalha os mitos e crendices na história, que vai de jesuítas, tesouros escondidos, destinos ligados com animais, mortes misteriosas até entidades primitivas. A ligação que o homem sem nome tem com o mar é interessante, sua fonte renovadora, seu lar por direito. Outros símbolos também são dignos de nota: a mulher como estrutura-mor; o budista como voz mundana; a criança como um elemento curioso e inesperado; o animal como amuleto, o totem, o sagrado; os misticismo como real; o real como mágico; o morto como Macguffin. O irmão que tem nome de escritor famoso e é da profissão, surfista quando jovem, assume a vilania pessoal que será confrontada no desfecho na forma de outro, um nativo que cria numa porrada só o título do livro. A ex, provavelmente o símbolo mais poderoso da obra (ao lado do avô/tio e protagonista/autor) conduz o melhor momento da história, com uma naturalidade impressionante, causando – pelo menos em mim – a forte sensação de já ter vivenciado um diálogo semelhante, e este é o grande mérito de Barba. Essa intimidade com o leitor, senta aqui, viva comigo a situação. Eu, caipira do interior de São Paulo, sei o quanto lendas urbanas são fortes em cidadezinhas e o quanto o efeito de uma tem força na sociedade. Este é outro trabalho bem desenvolvido pelo Galera. O clímax no mar já é cena de cinema pronta. A entidade na caverna ficará para a história, mostrando quase um universo a parte, quase fantástico. Mas é justamente no real que se encontra o fantástico e uma frase na obra sintetiza bem isso: “Dizem que a vida vista de perto é mais fascinante.“.
Livrão! A resenha em superparágrafo foi uma homenagem ao fôlego de Barba.