Charuto de Mel
Participante da 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Charuto de Mel é o longa de estreia de Kamir Aïnouz, argelina irmã de Karim Aïnouz (Madame Satã), com viés autobiográfico e que narra a trajetória de Selma, uma adolescente pertencente a uma família de berberes residentes na França durante a guerra civil em seu país de origem nos anos de 1990.
Em sua iniciação à vida adulta, ela tem que lidar com suas primeiras experiências sexuais e suas escolhas afetivas e profissionais enfrentando as tradições de sua origem cultural e a comunicação difícil com seus pais (Salem e Casar) e entre eles.
A própria Aïnouz afirma que se trata de um filme feminista (ela chegou a afirmar que uma cena de violência sexual não seria censurada no mundo árabe mas uma cena de masturbação feminina com um pepino seria), e um de seus aspectos mais destacados nesse sentido são as cenas de sexo, sem qualquer viés de nudez mas cuja sonoridade fala muito: em uma delas, ouve-se predominantemente os sons da própria Selma; em outra, quase que apenas o seu parceiro; e, numa próxima, em outro estágio de sua vida psicológica, os sons se misturam mais fortemente.
Charuto de Mel
A personagem principal começa a sentir pulsões sexuais naturais, e encontra um primeiro parceiro em Julien, um colega um pouco mais velho que oscila entre o jeito francês de abordar uma garota (“desculpe, não perguntei se poderia te beijar”) e a pressão de parecer “macho” em seu círculo de amizades. Em um segundo momento, ela encontra um jovem bem-sucedido que a levará para outra vivência forte para que, após isso, ela tente encontrar um maior empoderamento.
Existem cenas que simbolizam o caminhar da jovem mulher no mundo opressor de controle masculino (repare em uma, especialmente, na qual Selma usa um capuz vermelho que remete a uma Chapeuzinho Vermelho caminhando conscientemente rumo a uma alcateia); mas, sobretudo, o nome do filme faz sentido pelo momento em que apenas mulheres, de diferentes gerações de sua família, conversam na localidade remota da região montanhosa da Cabília de onde provém.
Um detalhe que causa incômodo se dá, então, na personalidade da própria Selma: confrontadora em casa, porém frágil, submissa e carente de aceitação social, a garota demora pra achar seu rumo, o que nos tensiona a temer pelo seu destino. Como o roteiro não oferece muito mais detalhes sobre outros aspectos de sua vida, ficamos à mercê quase que exclusivamente das consequências de sua vivência sexual.
Uma boa sessão
Deve-se destacar a parca delineação de alguns detalhes relativos aos pais de Selma. Há algo de reticente nisto (o ar autobiográfico geral terá influenciado na construção dos pais, no sentido de que poderia expô-los?) e, partindo do detalhe de que eles são os únicos personagens cujos nomes nunca serão ditos ao longo do longa, depois de um primeiro momento em que pai e mãe têm comportamentos distintos, um mais compreensivo e outro mais apegado aos valores conservadores de sua cultura, ocorre de forma desnorteadora (e abrupta em excesso), quase que num plot twist provocado pela própria filha, uma transformação de perfis. A mudança de postura da mãe da garota conduzirá Selma na parte final, fazendo sentido então na proposta geral.
Charuto de Mel é, então, um filme sobre a mãe de Selma: não só em autorreflexões acerca de sua própria postura mas em falas como “Você ainda precisa de mim, mas agora de um jeito diferente”, e em uma cena em que as duas, sozinhas, atravessam um grupo de homens islâmicos, com a mãe alguns passos à frente sem sequer segurar na mão da filha, a personagem de Casar praticamente redefine os rumos de toda a prosa. Sem dúvida, nesse instante, o filme cresce.
Um longa interessante, indicado a melhor filme no Festival de Sevilha, recomendo, apesar de algumas irregularidades, este Charuto de Mel. Sob olhares atentos, produzirá elementos de análise dos papéis femininos em ambos os contextos: o religioso norte-africano e o ocidental.
Texto colaborativo: Marcelo Barreto e Ana Flávia Barreto Paschoal