Cidadão Kane – A ousadia em forma de arte
Com apenas 26 anos, o cineasta Orson Welles realizou um dos maiores filmes da história, reconfigurando a sétima arte com ousadias narrativas e técnicas, como os usos até então inovadores de plongée e contra-plongée, exploração do campo e contra-campo, narrativa não-linear, além de uma edição e montagem muito sofisticadas para a época.
Iniciando a carreira como um prodígio no teatro, Welles logo ganhou o “trading topics” em 1938, durante os longuíssimos 60 minutos onde fez uma versão paródica de ”A Guerra dos Mundos” de H.G. Wells, para a véspera de Halloween, que criou histeria em parte dos ouvintes de Nova Jersey – uma ação que não passou batida, lhe abrindo as portas dos estúdios RKO, onde ele teve privilégios e controle artístico absoluto: interpretando, dirigindo, escrevendo e produzindo Cidadão Kane (que também foi roteirizado por Herman Mankiewicz, que acabou de ganhar um filme na Netflix, ”Mank”, a quem dividiu o Oscar de Roteiro Original, de nove indicados).
Cidadão Kane
Welles retratou em Cidadão Kane a vida e a decadência de um magnata da comunicação norte-americana, baseado na história do milionário William Randolph Hearst e até um pouco em partes de sua própria vida, onde ele faz ao mesmo tempo um tratado sobre a imprensa e um épico sobre um “imperador” – que note, jamais tem a liberdade de narrar a própria biografia em primeira pessoa, sempre acompanhamos sua trajetória através do ponto de vista de terceiros, de amores e amigos que conviveram com essa figura tão emblemática, tornando a narrativa fluída enquanto salta no tempo, em um vaivém do presente ao passado, do mais passado ainda até um instante antes do agora e assim por diante.
Flertando com o horror gótico (a mansão de Kane é uma versão do castelo de Drácula de Brownin e Freund, uma década atrás, afinal), o expressionismo alemão (com as abstratas e poderosas sombras que recaem sobre os personagens e ambientes) e com o noir (o jornalista Jerry Thompson de Willaim Alland, tem como missão descobrir o que é ou quem é “Rosebud”).
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Aliás, a marcante última palavra de Kane no filme, que começa pelo fim, serve de MacGuffin para o grande mistério do enredo, que usa isso como desculpa para desenvolver um drama pessoal, de um homem da sua infância até a velhice, passando por esposas, conflitos profissionais e políticos e depoimentos de pessoas próximas, que constroem esse longa planejado sistematicamente como um grande quebra-cabeças (que no terceiro ato, aparece figurado como hobby da Suzy Alexander de Dorothy Comingore), onde cabe ao público montar as peças e tirar suas próprias conclusões.
Porque independentemente da forte relação que o protagonista tinha com seu trenó (e portanto sua infância, sua gênese, suas origens), é dada ao espectador a oportunidade de interpretar certas passagens sem se prender ou se preocupar unicamente com “Rosebud”, nada mais do que uma desculpa de Welles para realizar uma produção altamente autoral, onde ele ainda mimetiza momentos retirados do teatro (de algumas atuações a certos enquadramentos, permitindo inclusive o despejo do holofote para cenas significativas), da própria imprensa e mídia impressa (com os letreiros explodindo na tela), do rádio (o locutor resumindo sua biografia logo nos primeiros minutos em tons polêmicos e alarmantes) e documentais (com o documentário que foi realizado sobre o personagem e retratado especificamente como tal).
Uma produção marcante
É simplesmente brilhante a maneira como Welles brinca com a ideia do espelhamento e da impossibilidade de Kane ter domínio sobre a própria vida, com o diretor emoldurando alguns momentos, como o flashback da sua infância: vemos o jovem protagonista brincando ao fundo com seu trenó, através da janela, enquanto três adultos discutem seu destino; ou depois, na fase adulta, durante uma festa, quando dois de seus amigos falam sobre o magnata, enquanto vemos o seu reflexo no vidro da janela; e até perto de seu fim, quando ele caminha desolado e solitário pelos corredores da mansão, deixando seu eu para trás, com apenas os reflexos infinitos indo além.
A grandiosidade em que o cineasta embala as ambientações é honestamente impressionante e fica ainda mais singular quando ele joga personagens em tela, desfilando em toda aquela magnitude e dando significativos níveis de profundidade em cada cenário (como quando enquadra um em primeiro plano e outro em terceiro, vindo como uma silhueta das sombras ao fundo). Tudo em cada lugar é colossal, requintado e glamoroso, tal qual seu protagonista ou até mesmo por onde ele passa, como se exercesse algum poder sobrenatural sobre as paragens. Assim é Cidadão Kane, um gigante diante de nós.
Mesmo este, que é considerado um dos maiores filmes da história do cinema, quase não saiu do papel, já que Hearst maquinou várias estratégias para sabotar a produção. E o longa, quando finalmente saiu, ainda acabou sendo um fracasso comercial, que fez a produtora perder 150 mil dólares, uma fortuna sem igual na época. Welles nunca recuperou a confiança dos grandes estúdios, mas conseguiu deixar um marco para todas as gerações – em filmes seguintes (e também quadrinhos e séries que se inspiraram e se inspiram nessa obra-prima até os dias de hoje). Não se preocupe com a palavra-chave. Se foque na jornada e de onde ela começou.