Caligari!

“Há algo de assustador entre nós”, diz, em dado momento, lá pela metade do livro, como quem pede socorro, um temeroso Francis para os policiais do vilarejo de Holstenwall. O personagem, que no caso se refere às mortes em série que vem assombrando o local onde mora, bem que poderia estar falando de ‘Caligari!’, a nova obra do artista gráfico Alexandre Teles, que adapta para a linguagem das histórias em quadrinhos um dos filmes marcos do expressionismo alemão, ‘O Gabinete do Dr. Caligari’.

Dirigido por Robert Wiene, a obra original narra, através dos flashbacks de Francis, a tragédia que se abateu na cidadezinha localizada na região montanhosa da Alemanha após a chegada do Dr. Caligari e seu médium sonâmbulo Cesare. Com o decorrer da estadia da dupla, pessoas morrem e as suspeitas recaem sobre os dois.

Quem nunca assistiu ao filme, desculpa pelo spoiler centenário; mas quem já viu, sabe que toda a trama é fruto da imaginação de Francis, que é um jovem interno de uma instituição psiquiátrica dirigida pelo Dr. Caligari. O plot twist, de acordo com Alexandre Teles, a qual ele chama de ‘história-moldura’, e que foi deixado de lado no seu livro, não constava no roteiro original escrito por Hans Janowitz e Carl Mayer e foi adicionado por Wiene no intuito de glorificar a autoridade – personificada na imagem do bom doutor – e condenar como loucos aqueles que vão contra ela.

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Logo, o que temos nesta obra recém-lançada pela editora Veneta, não é mais a história de um jovem louco, mas sim de um maligno doutor que controla o sonâmbulo Cesare para cometer atos de violência injustificáveis; o que, nas palavras do artista gráfico, representa “o símbolo do homem comum que se deixa hipnotizar pela propaganda governamental, perde a própria vontade e, sob a pressão do serviço militar compulsório, é treinado para matar”.

Em termos de contextualização histórica, vale ressaltar que o filme, lançado em 1920, faz parte de um dos mais importantes movimentos cinematográficos, influenciando desde Alfred Hitchcock a Tim Burton e servindo de base para o cinema noir norte-americano. Surgido em 1918, fruto da paranoia, do extremo pessimismo social e da descrença no avanço tecnológico que reinava no período de derrota pós 1ª Guerra Mundial, o expressionismo alemão deu vida a um dos visuais mais icônicos que o mundo já viu.

O branco no preto

Utilizando-se desta imagética marcante do movimento, dotada de um forte contraste entre luz e sombras e da ambientação cenográfica trabalhada na geometria do absurdo, Alexandre Teles recriou, com total respeito ao original, a atmosfera e a ‘fotografia teatral’ de ‘O Gabinete do Dr. Caligari’ ao longo de seus 600 quadros.

O toque autoral, portanto, ficou por conta da técnica utilizada pelo artista: a monotipia à maneira negra. O trabalho artesanal de tiragem única, que, segundo o autor, durou cerca de quatro anos, consiste em uma superfície lisa de metal pintada de preto que recebe o ‘desenho’ conforme a tinta vai sendo removida. Aqui, contudo, cabe uma única ressalva. Por conta da técnica, que trabalha apenas com branco e preto, e do material original no qual se baseia, calcado no chiaroscuro, alguns detalhes das cenas se perdem na transposição para o papel, tornando-as – por que não, propositalmente – confusas.

Nestes momentos, sem contar com balões de fala ou recordatórios que o situem, afinal trata-se de uma obra ‘muda’, o leitor se vê diante de três opções: recorrer a uma versão remasterizada do filme e ver o que se passa; fazer um exercício mental de imaginação e preencher os negros vazios; ou se entregar à escuridão.

“Quando as sombras ficam mais escuras…”

caligari 1A frase acima, que antecede uma cena de tentativa de assassinato, bem como a citação que abre este texto, conversam muito com o ‘Caligari!’ de Alexandre. Pois, o pouco que se perde em detalhes, ganha-se muito na atmosfera sombria e assustadora da obra. Tido como um dos primeiros filmes de terror e pioneiro no thriller psicológico, o livro eleva, ao mesmo tempo em que propõe uma releitura, a ambiência proposta pelo longa.

‘Descascando’ da tela negra as camadas do mundo de Caligari e companhia, Alexandre desvela um cenário no qual, quadro após quadro, o leitor vai se afundando em uma (sur)realidade feita de linhas tortas, sombras hiperprojetadas e feições e formas que se transmutam. São imagens que, assim como qualquer boa mídia fria que se preze, por requererem uma segunda e terceira olhada, acabam se fixando no inconsciente do leitor, como um pesadelo.

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