Dark, premissas de ficção e boas doses de fantasia

A imprensa nacional e internacional, desesperada por encontrar paralelos e rotular tudo, erra feio ao tachar que esta série é a “Stranger Things alemã”, como se o desaparecimento de uma criança em floresta, que abre-se para outros mistérios estranhos, fosse algo exclusivo da obra dos Duffer. Pelo contrário. Ao usar hermetismo e temporalidade para falar sobre dramas humanos, ela se aproxima mais de True Detective, aliás. Mas à parte da pobreza comparativa, Dark é muito singular em sua proposta e o decorrer de sua trama prova isso.

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Usando inúmeros artifícios envolventes, a história nos fisga logo de início: com um suicídio, a investigação do sumiço de um adolescente e então o desaparecimento de uma criança do elenco principal. Os casos ocorrem com proximidade de semanas ou dias e a princípio não tem relação, fazendo o espectador imaginar que tenhamos aqui um serial-killer, pra depois cogitar algo sobrenatural. Mas o acerto da produção é justamente provar que estamos errados o tempo todo e que o clichê não faz parte do que se desenrola em Winden.

Utilizando 4 famílias da pequena cidade alemã (os Kahnwald, os Nielsen, os Tiedmann e os Doppler) sob a sombra de uma usina nuclear (carregada de justificativas plausíveis ao longo do enredo), Dark compõe uma narrativa tétrica não-linear passada em três épocas (2019, 1986 e 1953), que usa de elementos fractais para narrar sua história (elementos estes perceptíveis ao longo dos dez episódios e também no jogo imagético da abertura espelhada). O que temos em essência por aqui, é uma obra de viagem no tempo. E uma das melhores.

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Os criadores da série, Baran bo Odar (que dirige a maior parte dos episódios) e Jantje Friese (a roteirista) não se prendem somente ao que já foi dito sobre premissas de viagens temporais (ainda que também faça bom uso delas), indo além, passando pelo ocultismo de Hermes Trismegisto, crime policial (desaparecimento, sequestro, assassinato, os corpos, além de um típico suspeito), e dramas familiares (traição, separação, paixão, obsessão, distanciamento etc), tudo embalado por uma envolvente e melancólica trilha sonora, um apuro técnico impecável de fotografia e figurino (que nos situa muito bem em cada época), em um roteiro que prova que, mesmo com um grande elenco e nomes difíceis de decorar, tudo se amarra e nada sobra ou está ali por acaso.

Dark diz a que veio logo no segundo episódio, e no quinto traz a primeira grande revelação (o nível explodidor de cabeça é semelhante ao desfecho de Clube da Luta, Os 12 Macacos e O Grande Truque, para citar alguns exemplos bem feitos). A série parece não ser fácil de entender, mas entrega perguntas e respostas na medida certa para não ser impossível de ser compreendida, com ritmo balanceado (nem rápido nem lento), ideal para não sobrecarregar o espectador de informações.

Apreciadores de Matrix (belamente citada aqui) vão se familiarizar com algumas questões existencialistas, ponto alto da série. Assim, a viagem no tempo, mais do que uma anomalia nuclear gerada pela usina em uma caverna, se desdobrando numa entroncamento entre três épocas, também tem seu mérito em usar a questão como metáfora para comportamentos humanos, do sufoco da rotina e da involução que interioranos percebem ao longo da vida quando não saem do lugar. Segredos guardados em porões, mentiras na ponta da língua e a compreensão de que tudo acontece ao mesmo tempo, não importa se em 1953 ou 2019, apenas separados por uma parede invisível do círculo.

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Indo um pouco para os spoilers e considerando agora tudo que a viagem no tempo pode fornecer, a grande pergunta é sobre a identidade de Noah (um codinome, é claro, vindo de Noé), evidentemente um vilão (sua visão com a tatuagem me remeteu a Dragão Vermelho), que desde já dá para descartar ser Bartosz pela coloração dos olhos (Agnes havia citado um marido pastor de pouca fé, mas isso pode ser um despiste narrativo). Jonas (não a toa o mesmo nome bíblico do profeta que viveu na boca da baleia), não é só o protagonista, porém sendo este um filho dos efeitos do tempo e se colocando contra o mesmo em sua versão futura, ele acaba sendo o verdadeiro paradoxo. Claudia é a força de contraponto ao vilão e mesmo que seja uma figura de propósitos insólitos (encomendando seu próprio maquinário de viagem temporal ao mítico Relojoeiro), ainda me parece que ela manipula Peter e Tronte para realizar algo mais pessoal e emocional, como reconquistar o que perdeu no passado: a filha, talvez?

Mikkel não atravessou a caverna na primeira vez, ele foi raptado por alguém e jogado no passado — aqui, chuto ser um ato do Jonas do futuro, buscando concretizar seus planos de manter tudo como está. Mas por que Michael se matou, afinal? Por que crianças e adolescentes em específico, e não aleatoriamente, foram usados na “máquina do tempo cadeira” que Noah vem testando? E qual o papel do jovem Helge nisso tudo?

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Tal qual Arquivo X e a já citada True Detective, Dark é uma série construída para ser debatida ao longo do tempo, independente de quão fluído e instável ele seja. Onde o espectador vai desbravar teorias sem fim, sem concluir ou acertar nada de fato, até que chegue a segunda temporada. Até lá, uma legião de fãs já terá sido criada, faminta por revelações e nova perguntas. Eu sei que sim.

Eu estive lá.

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