Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar

A proposta do documentário Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar é ingênua: provar que os habitantes de Toritama, cidade no Agreste pernambucano de cerca de 37.000 habitantes (estimativa de 2012), estão deslumbrados com a produção de jeans da cidade (cerca de 15 a 20% do jeans consumido no Brasil sai das mãos dos toritamenses). Crentes de que estão fazendo riqueza “trabalhando para si mesmos, sem um chefe e sem horários fixos”. Mas no fundo, em claro paralelo com os mineradores da Serra Pelada nos anos 70, não percebem que o futuro é pessimista (o nome do filme por si só é um spoiler: não comentarei aqui).

Com base nessa premissa, o novo longa de Marcelo Gomes (Cinema, aspirinas e Urubus) perde a oportunidade de colocar na mesa outras reflexões mais sutis sobre o que é o nordestino.

Sempre receptivo ao “estrangeiro”, pelo qual nutre um misto de admiração e receio (este último exalado por uma nítida retração). Na medida em que reclama do lugar em que vive quase como se fosse culpado pela sua própria miséria (“que secura, vamos embora dessa terra”; “quero morrer em São Paulo”). Ao mesmo tempo abraça com entusiasmo a proposta de se tornar polo produtor da indústria de tecelagem sem perceber que, espontaneamente, se lança a condições que beiram o trabalho escravo.

Estou me guardando para quando o carnaval chegar

Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar

O filme apenas resvala mas não se aprofunda em algumas falas de contraditório. Um dos entrevistados reluta em acompanhar o modo de vida dos conterrâneos. Prefere pensar no futuro e nas condições trabalhistas; uma idosa se recusa a participar da celeuma – “eu sou uma agricultora”. O que poderia ampliar a sensação de histeria coletiva.

É nítida a capacidade de se expressar que o nordestino médio detém. E sua agilidade de raciocínio é sempre subestimada, até por si mesmo. Esse que vos fala é matemático, e vários dos melhores matemáticos que a Terra Brasilis já produziu são dessa região. E o personagem cômico do longa delineia essas características: ainda jovem, com fala gostosa, mas provavelmente já apresentando sinais do preço que a bebida cotidiana cobra, um dos moradores desejava ser profeta – o que mostra a autoconsciência de que tem habilidades de fala. Mas os frequentes hiatos que exibe nos monólogos nos mostram a zona de transição entre a manutenção dos sonhos e a hesitação de que poderá não mais conseguir, começando em por em dúvida o próprio sentido do trabalho e de sua própria capacidade.

Estou me guardando para quando o carnaval chegar

Leia aqui sobre o filme Quebradeiras

De todo modo, a escolha por esses e pelos demais entrevistados, aqueles que se entregam à produção, é acertada. Os últimos se mostram seres ricos em humanidade, com personalidade suficiente para assumir a postura da cigarra (o importante é o “carpe diem”, “o futuro ninguém sabe”), sem contudo se dar conta de que suas convicções os aproximam das de dependentes químicos. Atente para uma das melhores passagens do filme: a solução que encontram para conseguir viajar no feriado e as consequências conscientes dessa solução. A estranha sensação de que a promessa de riqueza está se confrontando com uma realidade que está fragilizando essa convicção deixa um espectador mais sensível com um quê de tristeza.

Outro mérito do longa é não cair na tentação de discutir os impactos ambientais da indústria do jeans. Apesar de pertinente, o foco ambiental é colocado de lado em prol de algo menos conhecido. A relação humana com seus próprios desejos. Ademais, a voz nordestina do diretor recifense o transforma em um nativo para esse povo. A fala franca, erroneamente entendida como bruta para quem não está habituada, entre cineasta e habitantes e habitantes para com ele, permite uma transparência maior; assim, é um mérito do filme, de fato.

Fica, no fim, um gosto de que “poderia ter sido melhor”. Certamente, algumas oportunidades de aprofundamento menos óbvias se mostraram mas não foram de fato aprofundadas. Torcemos para que tenham sido percebidas por uma equipe que teve o mérito de demonstrar interesse em narrar a “História vista de baixo” e possam ser revisitadas; afinal, “o futuro, ninguém sabe”.

Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar

Nome Original: Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar
Direção: Marcelo Gomes
Elenco: Moradores de Toritama
Gênero: Documentário
Produtora: Carnaval Filmes, Rec Produtores Associados, Misti Filmes
Distribuidora: Vitrine Filmes
Ano de Lançamento: 2019
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