His Dark Materials: Fronteiras do Universo – 1ª temporada
Uma das maiores obras da fantasia mundial, His Dark Materials ganha adaptação fiel e suntuosa, mas sem pressa em apresentar todos seus elementos. A HBO e a BBC se uniram para finalmente dar vida à trilogia de livros de Philip Pullman, depois do fiasco de A Bússola de Ouro (que tem méritos inclusive sobre essa série, com ótimo elenco e efeitos, mas que pecou na edição e afundou nas bilheterias em 2007).
Assim, o produtor e roteirista Jack Thorne encontrou no uso de 8 episódios de 1 hora cada a solução para desenvolver melhor a história de Lyra Belacqua. Ela vive num mundo semelhante ao nosso, mas onde existem ursos de armadura reinando no Norte, feiticeiras centenárias e uma representação animal de nossas almas, chamado de dæmon. Tudo isso entre outros elementos fantásticos, científicos e questionadores. Coloca então as instituições religiosas na mira, figuradas aqui como o vilanesco Magistério (uma entidade que é uma espécie de união entre todas as religiões cristãs: católica, protestante, ortodoxa etc).
Afinal, Pullman é um autor britânico ateísta que, em resposta à pregação cristã realizada pelo conterrâneo C. S. Lewis em As Crônicas de Nárnia (onde Leão é Jesus e a Feiticeira é Lúcifer, só para começar), criou um cenário onde os heróis são aqueles que questionam as instituições religiosas e a Autoridade (isso mesmo, Ele), ao invés de se submeter a uma doutrinação. Dessa forma, faz uso da ciência para explorar as fronteiras do universo e uma resposta para o Pó. Oi? Uma misteriosa partícula responsável por tudo, pela mudança dos dæmon na infância e na fixação em uma única forma após a puberdade; até para alimentar ferramentas como o aletiômetro e a faca sutil, mas é muito além disso.
His Dark Materials: Fronteiras do Universo
Fazendo uso de uma história inventiva, tanto em seus elementos fantásticos, quanto na estrutura, o escritor coloca crianças desaparecendo e Lyra saindo em busca de seu amigo com a ajuda dos gípcios (são como ciganos das águas). Enquanto isso, na aventura, vai descobrindo outras raças e mistérios do mundo, inclusive mais sobre si própria e sua família.
Thorne, por sua vez, se mantém extremamente fiel à obra original. Usa apenas um personagem inédito aqui e ali para dar respostas menos óbvias ou saídas mais realistas para algumas soluções. No mais, todo o enredo do primeiro livro (A Bússola de Ouro) está ali. Ganha pequenos adendos que colaboram para dar um corpo à narrativa, como mais espaço para as ações dos gípcios na busca pelas crianças em Londres; do que as mesmas estão passando terrivelmente em um confinamento; de mais momentos dramáticos com Mrs. Coulter e até dos bastidores das várias forças e interesses distintos que giram pelos corredores do Magistério, incluindo uma participação maior do mal intencionado Lorde Boreal e o receoso Will Parry, o que é um recorte exclusivo de todo o primeiro capítulo do segundo livro (A Faca Sutil), encaixado de maneira mais orgânica nesta primeira temporada.
Uma bela produção
Os dæmons, aliás, estão perfeitos, assim como todo o trabalho de computação gráfica, fotografia e direção de arte, dignos de Hollywood. Thorne e os outros diretores trabalham verdadeiros painéis em cada montagem, entregando cenas suntuosas e belíssimas, acompanhados da inspirada trilha sonora de Lorne Balfe, carregada de suspense, misticismo e epicidade. Por outro lado, a produção peca no excesso de morosidade do enredo, que segue um ritmo lento entre as sequências. Dessa forma, fornece poucos momentos de batalhas (e quando elas chegam, duram pouco tempo em tela), numa escolha perigosa, que não afeta o ritmo, mas pode espantar o grande público acostumado a episódios mais dinâmicos.
O elenco
Nada que ainda seja danoso a essa série, coroada por um elenco de peso, a começar por Dafne Keen (a X-23 de Logan), que traz toda a astúcia, coragem e ousadia de sua Lyra da Língua Mágica, repleta de personalidade e carisma, ganhando facilmente qualquer espectador. Ruth Wilson (do ótimo The Affair) e James McAvoy (o Xavier dos novos X-Men dos cinemas) fazem os co-protagonistas do seriado, provando que não existe preto e branco nem bem e mal em um mundo de figuras complexas, que vivem pela fé ou pela ciência, pelo amor maternal e o desejo de curar as crianças através da dor, nesta obra sem igual de Philip Pullman.
Lin-Manuel Miranda se diverte como Lee Scoresby, James Cosmo fornece muito peso ao seu Farder Coram, enquanto Ariyon Bakare é responsável pelo maior suspense dessa primeira temporada, com seu misterioso Lorde Boreal, pertencendo a um elenco de outros nomes, fazendo jus aos seus personagens.
Respeitoso ao material original e trabalhando de maneira minuciosa cada passagem dos livros sem deixar de compreender que é uma adaptação e portanto podendo se abrir a novas interpretações, His Dark Materials é ao mesmo tempo um produto original para fãs e não-fãs das fronteiras do universo, um material ousado e que não teme cutucar as feridas religiosas, de um tema que nunca deixa de ser atual e agora mais do que nunca. E o realiza com fantasia, ainda que com um cadinho de desesperança ali depois daquela fenda.