Inocência Roubada, tema pesado em obra espetacular

Baseado em uma história real vivida pela própria atriz, bailarina e diretora Andréa Bescond, a produção Inocência Roubada é uma adaptação de um espetáculo de dança. Essa foi uma das formas encontradas por ela para se libertar dos traumas sofridos na infância. Abusada sexualmente por um amigo dos pais, Andréa, primeiramente, levou o tema para os palcos recebendo vários prêmios, como o Molière de Melhor Solo Cena.

Odette (Cyrille Mairesse) é uma menina de 8 anos que adora dançar e desenhar. Sem rodeios, o filme já abre nos mostrando que a pequena bailarina sofre abusos de um grande amigo da família. O homem, bem apessoado e simpático, sempre convida Odette a brincar de boneca ou de cócegas (o título original é Cócegas). A menina não sabe o que fazer, afinal, não entende o que é aquilo, e acaba sempre indo com Miguié (Pierre Deladonchamps). Os pais estão sempre muito ocupados se dedicando ao trabalho e ao sustento da família. Portanto, estão cegos para o que realmente está acontecendo ali debaixo de seu próprio teto.

Inocência Roubada
Odette sofre abusos de um amigo da família

Memórias conflituosas

O filme mistura cenas de uma infância que poderia ter sido simplesmente linda, com a vida adulta de Odette, uma dançarina com uma carreira de altos e baixos. Mergulhada no mundo da dança, em terapia e flashback, ela cria coragem para verbalizar seu sofrimento, e assim, procura uma psicóloga para tentar superar seu trauma. Já com seus 30 e poucos anos, ela ainda não havia falado com ninguém sobre ter sido abusada quando criança. Entretanto, as atitudes de Miguié para com Odette repercutem em seu comportamento quando adulta.

Com cenas extremamente criativas, num quebra-cabeça da memória traumática, vamos conhecendo a pequena e a grande Odette, seus pais, seu melhor amigo, e claro, seu abusador. A mãe de Odette, magistralmente interpretada pela premiada atriz Karin Viard, é um caso à parte. Em constante negação, ela representa 90% das famílias de vítimas de pedofilia. Uma mãe que não sabe amar, que se utiliza do poder que o adulto tem sobre a criança. Quase como um abusador.

Andréa Bescond traz seu relato de vida no palco e nas telas
Andréa Bescond traz seu relato de vida no palco e nas telas

Andréa Bescond e a Inocência Roubada

Andréa sempre pensou que era uma garota problemática e que tudo o que aconteceu era pura e simplesmente culpa dela. Entre vícios, drogas, álcool, relações tóxicas e sem futuro, falta de amor e de autoestima, ela gradualmente foi se desumanizando. Portanto, foi através da dança que pôde se reerguer e trazer à tona o trauma a ser denunciado. E essa é a história real de Andréa Bescond. Que mulher corajosa! Trazer seu relato para o mundo, primeiro através da dança e do teatro, e depois pelo cinema, atuando, escrevendo e dirigindo, uau…

Diferentemente do espetáculo teatral, o filme tem um ponto de vista mais amplo, uma vez que também conta com os personagens ao redor que captam, ou não, a dor da protagonista e sua própria dor também. Eu não tive a oportunidade de ir à França assistir Inocência Roubada no teatro né, mas pude ver algumas cenas no YouTube e você também deveria dar uma checada clicando aqui.

Inocência Roubada
Odette e seus pais

Precisamos falar sobre a pedofilia

Romper o silêncio para desfazer o tabu em torno do tema e alertar para o número de casos de abuso sexual são algumas das motivações dos realizadores ao levar para as telas filmes que abordam pedofilia. Graças ao espetáculo, Andréa e Eric puderam ver como a violência sexual se tornou uma praga. Eles receberam milhares de testemunhos de vítimas que, ao se verem representados no palco, puderam criar coragem para se abrir. Trazer essa história para o cinema, só tem a acrescentar, pois infelizmente é a realidade de muitas crianças.

O filme traz essa possibilidade do diálogo de maneira tão linda e sensacional que é como um soco na cara. Eu confesso que chorei quase do começo ao fim. Além do tema pesado, a forma escolhida para contar essa trajetória de vida foi bonita demais. Eles não quiseram fazer um filme “normal”, como os que já existem, mas sim uma obra com poesia e humor. Uma narrativa que pudesse dialogar com o público e mostrar a todos, não só às vítimas, que quem sofre abuso também pode e deve andar de cabeça erguida.

A dança é o meio que Andréa/Odette encontra para se expressar
A dança é o meio que Andréa/Odette encontra para se expressar

Um filme emocionante

É importante também salientar que a vítima não é culpada. Afinal, o agressor adulto que é o responsável. E o filme chega até esse ponto, culminando em uma cena maravilhosa de reencontro das duas Odettes. A cena que mais me fez chorar, é claro. Essa emoção pode ser explicada pelo nosso reconhecimento como criança, com nossos próprios sofrimentos, sejam eles quais forem, e também como família, como parentes de uma vítima em potencial. De acordo com François Kraus, o produtor, as lágrimas dos espectadores no final do filme são as mesmas dos espectadores do espetáculo original: são lágrimas de empatia, emoção e libertação vindas de dentro de nós. Eu que o diga.

Assim como o serial killer de 8MM, Inocência Roubada nos mostra que o monstro pode ser qualquer um, pode estar em nossa casa, e não é necessariamente um homem escondido atrás de uma capa lhe oferecendo doces na esquina.

Inocência Roubada trata de forma relativamente leve um assunto terrivelmente pesado. É uma obra brilhante que aborda também o renascimento daqueles que, com coragem, aprendem a subir pela encosta de sua vida. Um relato sobre a resiliência e a alegria de viver apesar de tudo. O filme entra em cartaz dia 11 de julho e eu recomendo MUITO.

Inocência Roubada

Nome Original: Les chatouilles
Direção: Andréa Bescond, Eric Métayer
Elenco: Andréa Bescond, Karin Viard, Clovis Cornillac, Pierre Deladonchamps
Gênero: Drama
Produtora: Les Films du Kiosque
Distribuidora: A2 Filmes
Ano de Lançamento: 2018
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