Middlesex, livro de Jeffrey Eugenides
Uma jornada de autodescoberta
Middlesex traz a história de Calíope Stephanides, uma adolescente descendente de gregos que se sente diferente das outras meninas da sua idade. Vivendo nos Estados Unidos dos anos 1960, ela se vê dividida entre a modernidade que vê fora de casa e a tradição dos seus avôs, que migraram da Grécia em busca de uma vida melhor.
Quando a puberdade a atinge, Calíope não só nota que se sente atraída por uma de suas amigas, como também percebe que sua voz engrossou, ela ganhou mais músculos e um pomo de adão nasceu no seu pescoço. No entanto, é só depois de um acidente em que ela vai parar no hospital, que um médico descobre que Calíope na verdade é intersexo e que ela tem características físicas e hormonais tanto do gênero biológico masculino, quanto do gênero biológico feminino.
O médico acredita que Calíope é uma menina e sugere que ela passe a tomar hormônios femininos, uma ideia com a qual sua família concorda. Calíope, por outro lado, não se sente assim e resolve fugir para tentar se entender e viver sua própria vida.
Intersexo
Calíope, protagonista de Middlesex, é uma pessoa intersexo (embora o livro insista em chamá-lo de hermafrodita, um termo que já não mais se usa). O leitor sabe disso desde o início porque, quando o livro começa, Calíope, que agora é Cal, já se identifica como homem mas, nem o personagem, nem seus familiares mais próximos sabem disso durante boa parte da trama.
Acompanhamos a história de Cal mesmo antes dele nascer, mas o grande foco é justamente o protagonista, que quando nasce é automaticamente designado como mulher, mas que passa sua vida toda se sentindo inadequado nesse papel. Cal só descobre que é intersexo na adolescência e, embora sua família, que até aquele momento o criou como menina, ache que Cal deve continuar sendo Calíope, ele discorda e, por isso, sai em busca de se entender.
O livro parece trazer um ponto de vista relativamente diverso, uma vez que é difícil encontrar uma obra que tenha como protagonista um personagem intersexo. Cal não é um homem transgênero, ele é um homem que nasceu com características dos dois sexos biológicos, mas que se reconhece como homem.
Hermafrodita?
Claro que Middlesex não é um retrato perfeito da vida de uma pessoa intersexo e tem os seus problemas, mesmo porque foi escrito por um homem cisgênero em uma época onde não se falava tanto assim sobre o assunto. O primeiro deles é o fato do livro sempre definir Cal como “hermafrodita” e não intersexo, que aqui pode se dever não só ao ano em que o livro foi escrito, mas também à relação que Eugenides faz entre a trama e os mitos gregos.
Para além disso, o livro estabelece, mesmo que em pequena medida, que existem características que são exclusivamente femininas e características que são exclusivamente masculinas, já que Cal começa a notar sua “diferença” quando percebe que ele não gosta das mesmas coisas que as outras meninas.
Por último, Middlesex entende que o fato de Cal gostar de mulheres faz dele automaticamente um homem, ignorando que existem pessoas que são homossexuais e que Cal poderia se identificar como uma mulher e ainda se sentir atraída por outras mulheres.
Os gêneros nascem com a gente?
Por outro lado, ao mesmo tempo que o livro dá a entender que Cal é um homem porque gosta das mesmas coisas que os outros meninos gostam, ele também se questiona se o gênero nasce com a gente ou se nós somos ensinados a nos comportar dentro de características que são relacionadas a um gênero biológico ou outro.
Cal começa a notar sua mudança através de características físicas que são, em sua maioria, atribuídas aos homens, como a mudança de voz e o crescimento de músculos, mas também pelo seu comportamento social, que ele acha que não se encaixa no que ele reconhece como feminino.
Ele cita, por exemplo, o fato de todas as meninas se sentirem enojadas pelas cenas violentas em Ilíada, enquanto ele as adora, o que claro, não justificaria ele se reconhecer como homem, já que existem mulheres que gostam de cenas violentas e homens que se sentem enojados por elas, mas também fala que o médico acredita que Cal é mesmo uma mulher biológica simplesmente porque assistiu um vídeo antigo dela fingindo que dá mamadeira a uma boneca, como se meninos também não pudessem brincar da mesma maneira.
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O que Middlesex não diz, mas mostra, é que as características geralmente atribuídas a um gênero ou outro, são sim, ensinadas, e que muito mais do que isso, não existem características não físicas especificas que definam se alguém é homem ou mulher.
Cal, que é um homem, foi criado como menina e não só brinca de boneca, como também se interessa pelas cenas de violência em Ilíada. Ele, portanto, se interessa pelo que é considerado uma característica feminina e pelo que é considerado uma característica masculina, não porque ele é intersexo, ou porque ele é um homem ou uma mulher, mas sim porque Cal é uma pessoa e pessoas se interessam por coisas diversas, independentemente de seus gêneros, biológicos ou não.
A história da família
Middlesex conta a história de Cal mas, mesmo antes disso, o protagonista narra a história de sua família. O livro começa com Lefty e Desdemona, os avôs de Cal que saem da Bitínia e se instalam nos Estados Unidos.
É através dos olhos de Cal que acompanhamos toda a história de seus ancestrais – avôs, pais e tios – que também é a história de Cal mas, mais do que isso, é a história de uma família de imigrantes que sai em busca do sonho americano. Claro que como Cal nem era nascido quando boa parte do que ele narra aconteceu, o leitor supõe que ele ouviu seus familiares lhe contando, mas como tudo é contado com muitos detalhes, o livro dá a entender que o narrador preencheu as lacunas que faltavam.
Os Stephanides, então, passam por xenofobia, preconceito e desconfiança enquanto buscam empregos e crescimento social, ao mesmo tempo que formam sua família. Quando Cal volta ao passado, ele também está buscando uma maneira de entender quem ele é hoje. O que o livro implica é que nossas famílias também nos formam, seja de maneira genética ou por influência.
Mitologia grega em Middlesex
Jeffrey Eugenides também faz uma série de referências à mitologia grega, o que se liga ao fato de Cal ser de ascendência grega. O fato do autor usar sempre o termo “hermafrodita”, que hoje já é considerado ultrapassado e ofensivo, é, em parte, uma referência ao mito que conta a história de uma ninfa que pede aos deuses para que seu corpo seja misturado ao do rapaz que ela ama, Hermaphroditus. Seu pedido é atendido e os dois se tornam uma pessoa só, com os dois sexos. Quando narra a história de sua família antes do seu nascimento, Cal, à sua maneira, entra na mente dos seus ancestrais, uma habilidade que Hermaphroditus também possuía.
O livro também compara, de maneira não muito elogiosa, Cal a outros personagens mitológicos, como o Minotauro, que é meio homem, meio touro e a Quimera, que é formada por uma mistura de vários animais e aqui é usada como metáfora para uma personalidade complexa.
Até o nome de batismo de Cal, Calíope é o nome da musa da poesia épica.
Middlesex é um livro que comete alguns erros mas que, ainda assim, traz uma perspectiva inovadora e única e que prende o leitor do começo ao fim.