O Relatório – 7000 páginas de burocracia em um só filme
O uso da tortura como meio de obter informações já foi amplamente explorado em diversos filmes, séries e livros. Esta é uma ferramenta que já foi utilizada tanto por heróis (como Jack Bauer) quanto por vilões. E mesmo sendo um método comprovadamente fraco e cruelmente desumano de obter qualquer tipo de informações, ainda é possível encontrar exemplos recentes do uso da tortura na vida real. E é a displicência com a qual o governo americano empregou tais métodos que surpreende no filme O Relatório da tortura, um drama político de primeira, que conta a história real de Daniel J. Jones, um investigador do senado norte americano que passou cinco anos trabalhando em um relatório de quase 7000 páginas sobre como o governo americano e a CIA autorizaram o uso de tortura em prisioneiros depois dos ataques de 11 de setembro.
O Relatório – Thriller político
O diretor Scott Z. Burns, em uma coletiva sobre o filme, disse que a ideia inicial era fazer uma comédia sobre o caso – provavelmente culminando em algo similar a A Lavanderia, outra produção recente com roteiro de Burns e produção de Steven Soderbergh (que também é produtor de O Relatório da tortura). Conforme o roteiro foi sendo trabalhado e Burns conheceu os investigadores reais do caso, ele mudou de ideia e decidiu transformar o filme em um thriller político.
E é um thriller político dos bons. A mudança de tom parece ter sido uma decisão bem acertada, dada a seriedade da história e dos casos que ela explora. Sendo assim, são duas histórias paralelas, uma focada em Daniel Jones e seu trabalho durante os cinco anos da investigação; e outra, em formato de flashback, mostrando como se deu a formação da equipe da CIA responsável por torturar os presos e os métodos empregados.
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A montagem sincroniza de forma graciosa ambas as histórias. Nós vamos descobrindo o desenrolar dos fatos assim como o protagonista. Dois psicólogos (James Mitchell e Bruce Jessen) trabalharam em um programa da CIA chamado SERE (para Survival, Evasion, Resistance, Escape – seu intuito era treinar soldados para casos de captura) e eles alegam ter criado um método de extração de informações de prisioneiros com embasamento científico usando uma engenharia reversa do programa. Ou seja, através do uso de técnicas brutais e desumanas, tais como privação de sono, confinamento em locais fechados, desenvolvimento de uma sensação de impotência, e infligindo sofrimento extremo, como simulação de afogamento.
Mitchell e Jessen nunca tinham feito nenhum interrogatório antes. Assim, eles se aproveitaram de detalhes etimológicos e sintáticos da legislação americana e de um momento de medo pós-9/11 dos Estados Unidos para conseguirem crescer na CIA. Para quem se interessar pelos acontecimentos do filme, um dos artigos citados nos créditos é o “Rorschach and awe”, publicado na Vanity Fair em 2007.
Elenco de peso
O roteiro é bem escrito e, considerando que a obra é um drama político, ela nunca fica chata ou maçante. Os diálogos são afiados e bem trabalhados, os conceitos são explicados de forma natural, ao invés de ultra-didático e as motivações, mesmo de personagens que defendem o uso da tortura, se mantêm coerentes. Para ajudar, o elenco é fortíssimo, com nomes de peso como Jon Hamm, Annette Bening, Maura Tierney, Michael C. Hall e Sarah Goldberg. Na verdade, o elenco é tão bom que parece pouco aproveitado, sem muito espaço para cada ator brilhar.
Mas a grande estrela é, obviamente, Adam Driver. Com a imensa responsabilidade de carregar o filme, levando a história, Driver entrega uma performance de primeira, criando um personagem empático, com dilemas compreensíveis.
Trabalho duro
Talvez, principalmente em sua metade final, algumas cenas pareçam estar sobrando, mas o resultado final é positivo. Há uma grande chance do público terminar o filme exausto. Parece proposital, uma vez que o longa acompanha um personagem por cinco anos em um trabalho extremamente cansativo e pouco recompensador.
O resultado do investigador Daniel Jones foi o tal relatório que dá o título ao filme: um monstro de 6700 páginas incluindo 38000 notas de rodapé, fruto de uma dedicação tão extrema que abalou fortemente o governo americano quando ele finalmente foi divulgado, mesmo com a intervenção da CIA para tentar manter a maior parte do seu conteúdo sob sigilo, censurando e obscurecendo diversas partes (tal qual esta crítica o faz).
O cansaço talvez seja por isso: nós acompanhamos todo o processo para a criação do relatório, e os diversos empecilhos que o protagonista enfrenta parecem nunca ter fim. Todas as cenas se resumem a trabalho: nenhum momento pessoal é explorado e a única menção de Dan Jones é sobre um relacionamento que fracassou por conta do projeto estar consumindo completamente todo o seu tempo.
Então, ao vermos esse personagem passando noites em claro trabalhando incessantemente, confinado em uma sala sem janelas em um prédio de arquitetura entediante, gerando um relatório que não se sabe se será publicado, fica fácil fazer um paralelo com a privação de sono, confinamento e sensação de impotência que os psicólogos queriam gerar nos métodos da CIA. Portanto, talvez a concepção de tal relatório seja a ferramenta de tortura do protagonista.
O filme estreia dia 07 de novembro nos cinemas e dia 29 de novembro na Amazon Prime.