Quarto, um livro sobre sequestro do ponto de vista infantil
Jack é um menino de cinco anos que vive com a sua mãe em um pequeno quarto. Com uma pequena cozinha e um banheiro, eles o chamam de “O Quarto”. Para Jack, aquele Quarto (e sua mãe e ele) são as únicas coisas reais no mundo. De vez em quando, um homem que a mãe de Jack chama de “velho Nick” aparece. E então, Jack é colocado para dormir dentro do guarda roupa.
O que Jack não sabe é que, na verdade, sua mãe foi sequestrada e mantida presa pelo “velho Nick”. Ele mantém relações forçadas com ela, dais quais Jack é fruto. Um dia, sua mãe descobre que o “velho Nick” está sem emprego e com dificuldades para mantê-los. Com medo de que o homem os mate, ela planeja uma fuga. Finge que Jack morreu e pede para o que “velho Nick” o enterre longe da casa.
O amor da mãe
O Quarto descreve uma situação que, embora absurda, já aconteceu antes e com uma certa frequência, principalmente nos Estados Unidos. Uma rápida pesquisa na internet pode mostrar pelo menos três casos muito famosos parecidos com o descrito no livro, assim como também pode encontrar outros livros que contam histórias ficcionais sobre sequestro e cárcere privado, como Stolen – Cartas ao Meu Sequestrador e O Colecionador. No entanto, o livro O Quarto o faz de forma diferente.
Jack é um menino concebido e nascido quando sua mãe já estava em cárcere privado e sem qualquer perspectiva ou esperança de sair daquela situação. Para evitar que o menino, assim como ela, passe a vida esperando para ser posto em liberdade, ela inventa que o lugar onde os dois vivem é o mundo real.
Pode parecer absurdo para qualquer pessoa, mas a situação em que Jack e a mãe se encontram traz outras características. Para o menino que nasceu ali e nunca viu outra coisa além do que passa na TV (que a mãe diz que é uma mentira), aquilo parece plausível.
É também depois que Jack nasce que a mãe finalmente se rende à situação em que está e desiste de tentar fugir, afinal, parece mais difícil sair dali com um bebê a tiracolo. Quando ela descobre que o “velho Nick” está tendo dificuldades em manter os dois, ela então, toma uma decisão que vai mudar suas vidas: fugir. Assim como a decisão de não contar para o filho que existe um mundo real, a decisão de fuga também é completamente impulsionada pelo bem-estar de Jack. E o menino é uma peça extremamente importante no plano.
Ponto de vista diferente
Quarto narra a situação-tema de uma maneira bem interessante, o que torna o livro uma obra diferente sobre o assunto. Acompanhamos a história do ponto de vista de Jack. Por isso, no começo, a leitura pode soar um pouco estranha, mas é natural. Afinal, Jack não só é uma criança pequena, como também está preso em uma situação terrível e só conhece aquele mundo.
Mas também é isso o que faz de Quarto um livro diferente. Outros livros sobre o assunto tratam do tema sob o ponto de vista da pessoa sequestrada. Na maioria dos casos é uma mulher adulta ou adolescente. Os casos verdadeiros de sequestro e cárcere privado, que foram contados posteriormente, também são contados pelas vítimas originais, não pelos filhos que algumas delas tiveram no cárcere. Então, o ponto de vista da criança, presa naquela situação, nunca foi registrado.
Talvez porque seja algo extremamente difícil de registrar, especialmente em casos reais, onde a criança se vê presa entre uma mãe que é vítima de sequestro e abusos constantes e um pai que é o agressor e o abusador da mãe (e muitas vezes da criança). Em ficção isso pode ser feito de maneira diferente.
O Pós-sequestro
Embora o sequestro e o cárcere privado sejam temas muito importantes em Quarto, este não é o seu assunto principal. O livro se foca melhor no período pós-sequestro. Ficamos sabendo pouco sobre como a mãe de Jack acabou naquela situação, através de uma historinha com contornos de conto de fada que ela conta ao filho, enquanto planeja a fuga dos dois. Mas não acompanhamos o seu sequestro e nem muito tempo do cárcere. Quando o livro começa, ela já está presa há um tempo e já é mãe de Jack.
O leitor acompanha seus planos, a fuga de Jack, o resgate da mãe e a vida dos dois depois disso. É a partir daí que a autora, através de Jack, faz vários questionamentos. Depois que os dois saem do cárcere, eles são colocados em vigilância e, para a mãe, a sensação é a mesma de estar presa na casa do “velho Nick”. Essa é uma sensação que Natascha Kampusch, presa em cárcere privado por oito anos, descreve exatamente do mesmo jeito em seu livro 3096 Dias. Ela deixa claro que não entendia porque depois de passar tanto tempo presa, ela ainda precisava ficar mais tempo na mesma situação.
O livro também mostra a relação da mãe e de Jack com a família que tinha ficado todo esse tempo esperando a volta da filha. Mesmo que todos eles desejem, a relação nunca voltará a ser como era. Para os pais, a mulher que retorna não é a mesma menina que saiu. Agora ela está “estragada” e volta com um filho, que é a prova irreversível do sequestro, do abuso e desse estrago.
Realidade
O Quarto também mostra ao leitor o quanto é difícil para a mãe retornar à vida comum, mesmo que ela tenha desejado isso por anos e o quanto isso é mais difícil ainda para Jack, que nunca teve qualquer contato com o mundo fora dali.
O livro é extremamente realista, pelo menos, dentro da cultura americana. Os casos mais famosos de sequestro e cárcere são os de Natascha Kampusch, na Áustria, sequestrada em 1998 e liberta em 2006, e de Jaycee Lee Dugard, na Califórnia, sequestrada em 1991, e liberta em 2009, com duas filhas não muito mais novas que ela.
No entanto, embora esses dois casos pareçam distantes, não faz tanto tempo assim que Amanda Berry, Gina DeJesus e Michelle Knight, sequestradas em Cleveland em anos diferentes, foram encontradas. Todas em 2013. Amanda também trazia com ela uma filha. As outras mulheres contavam histórias de gravidezes que não foram completas porque o sequestrador e pai dos bebês as manteve passando fome e as espancava até que ocorresse o aborto.
Muitos casos reais
O caso que inspirou Donoghue a escrever O Quarto é um dos mais absurdos e medonhos dos últimos anos. O cárcere privado de Elizabeth Fritzl, dada como desaparecida 1984. Elizabeth, na realidade, tinha sido presa pelo próprio pai em um bunker no porão da família.
O pai, Josef Fritzl, fez a filha escrever uma carta para a família dizendo que tinha fugido. Em 2008, 24 anos e sete filhos depois, ela só foi descoberta porque um de seus filhos ficou muito doente e o pai teve que levar a criança a um hospital e assim despertou a desconfiança dos médicos.
O Quarto parece retratar uma história absurda e sádica, mas que infelizmente é muito realista e vem nas sombras de casos reais. O livro cumpre seu papel dando voz à mulher sequestrada e presa, que se manteve calada durante todos esses anos e a maior vítima da situação: seu filho com seu agressor.
O Quarto nos cinemas
O livro virou filme em 2016 e aqui no Brasil ganhou o título de O Quarto de Jack. O filme é bem fiel ao livro e transmite toda a agonia que é acompanhar a história de Jack e sua mãe, especialmente antes da fuga.
No elenco estão Brie Larson, Jacob Tremblay, Joan Allen e William H. Macy. Larson ganhou o Oscar de melhor atriz pelo seu papel no filme.
O livro Quarto não é totalmente inspirado em um caso real, mas reflete muitos casos e fala de muitos assuntos. A maldade, a ideia de dominância masculina sobre o corpo e a vida das mulheres, a dificuldade de se adaptar a situações diferentes, mesmo que a tenhamos desejado muito, mas também sobre o amor materno, a esperança e a habilidade de dar a volta por cima mesmo diante do que há de mais terrível.