Todos os Mortos – Os fantasmas da escravidão
Filme propõe reflexão sobre o racismo estrutural no país
São Paulo, 1899. A escravidão acabou há onze anos e a família Soares ainda tenta manter seus privilégios, enquanto tenta se acostumar com as novas leis. Enquanto isso, Iná (Mawusi Tulani), escravizada recém liberta, tenta reconstruir sua vida e melhorar a vida de seu filho (Agyei Augusto). O assunto principal de Todos os Mortos é a escravidão e o legado que ela deixou, mas é impossível não notar que ele é um filme majoritariamente feminino.
O filme trabalha com duas tramas que se intercalam: a família Soares, composta por três mulheres brancas, a mãe Isabel (Thaia Perez), e suas duas filhas Maria (Clarissa Kiste) e Ana (Carolina Bianchi), antigas proprietárias de terra, que ainda se seguram aos seus privilégios; e Iná, mulher negra e ex-escrava, que tenta sobreviver e melhorar de vida, ao mesmo tempo que cria o filho, João.
Todos os Mortos
Os personagens masculinos até existem, mas aparecem pouco e na maioria das vezes tem pequenas participações, como o marido de Iná que está longe ou eles são apenas citados, como o patriarca da família Soares, que quando o filme começa, já está morto.
As mulheres retratadas, no entanto, são muito diferentes entre si, já que elas vêm de backgrounds completamente diversos. Enquanto Iná foi escrava, Isabel, Maria e Ana sempre foram servidas. O longa, então, fala sobre a escravidão e sobre a abolição do ponto de vista feminino, o que não é tão comum no cinema brasileiro.
O Pós-abolição
A trama se passa em 1899, onze anos depois que a escravidão foi abolida no Brasil. Embora a situação pareça completamente resolvida, essa não é bem a verdade. Afinal, mesmo depois da abolição da escravidão, os negros continuavam sofrendo preconceito e ainda precisavam se submeter a trabalhos que não estavam muito longe da escravidão.
Aqui, todos os personagens negros trabalham como empregados e, geralmente, estão servindo pessoas brancas, mostrando que a situação não se alterou tanto assim. O caso de Iná, por outro lado, é diferente. Ela tem muita dificuldade de arrumar um emprego embora procure com empenho e, enquanto faz isso, ela precisa deixar seu filho sozinho.
João, o filho de Iná, começa a passar cada vez mais tempo na casa de Isabel, recebendo lições de Ana, que acredita que faz um bem para o menino, embora Iná não goste dessa interação.
A trama se passa no passado, mas reflete a maneira que o Brasil foi construído e explana como o país funciona até hoje. O racismo é só escondido, mas ainda se faz presente, em maior ou menor intensidade e as oportunidades para a população negra são muito menores do que as oportunidades para a população branca.
Os fantasmas do passado
O filme também flerta, de maneira bem leve, com o fantástico. Ana, a filha mais nova da família Soares, se mostra cada vez mais perturbada, o que preocupa toda a família. Maria, que é freira, até abandona seu posto de professora em um colégio católico para ajudar a irmã. Enquanto isso, Ana parece sofrer de algum tipo de histerismo, onde ela diz ver pessoas andando pela casa e pela rua.
Curiosamente, a maioria das pessoas que Ana vê são negras que já estão mortas. O filme não mergulha totalmente nessa ideia, mas dá a entender que Ana carrega com ela o peso da escravidão e do que a população branca fez à população negra.
Essa sensação fica maior quando se percebe que na sua família, Ana é a mulher mais frágil e que, embora ainda use e abuse dos privilégios que sua posição lhe dá, a que parece mais perturbada por questões sociais que não incomodam sua mãe e sua irmã.
Ana não chega a mostrar culpa ou remorso, mas tenta se perdoar ensinando João e garantindo para a mãe do menino que as aulas darão a ele maiores chances na vida. Talvez o histerismo de Ana seja uma maneira de colocar sua culpa para fora.
Aspectos técnicos de Todos os Mortos
Todos os Mortos é um filme com uma produção cuidadosa. O longa se passa em 1899 e os aspectos técnicos dele nos colocam nessa época. Boa parte do filme se passa em uma grande propriedade, onde a família Soares vive. Isso já demonstra a diferença que existe entre aquelas mulheres e Iná, que precisa trabalhar para viver.
O figurino também é primoroso e muito fiel ao período que retrata. Naturalmente que as mulheres da família Soares, que são ricas, têm roupas muito mais bonitas e bem mais limpas que as roupas de Iná, que é uma mulher pobre, recém saída da escravidão.
Todos os Mortos também faz uma clara distinção entre Ana, a irmã frágil e ligeiramente mais carinhosa, que está sempre de branco, e Maria, a irmã mais forte, que sempre quer ter o controle da situação, que está sempre com hábito de freira e, portanto, sempre de preto.
O racismo
O longa tem como intenção falar sobre racismo e sobre o peso que a escravidão teve não só nas pessoas, mas também no Brasil e na forma em que o país se desenvolveu. Todos os aspectos do filme ressaltam essas questões.
O roteiro já fala sobre isso claramente, e alguns detalhes aumentam essa sensação, como por exemplo, os comentários de Isabel sobre deixar o passado no passado e pensar no futuro, que soam extremamente próximos aos argumentos de pessoas nos dias de hoje, que apelam para que a escravidão seja completamente esquecida, ignorando os efeitos que ela tem atualmente, ou o fato de Maria tratar sua única aluna negra de forma bem distinta da que ela trata os outros alunos, que são brancos.
Todos os Mortos tem um roteiro bem interessante e uma condução inteligente. No entanto, ele se perde em algumas tramas, como a ideia dos fantasmas que Ana vê, que junto com o nome e com o clima do filme, fazem o telespectador achar que está assistindo a um suspense, embora essas tramas nunca sejam completamente desenvolvidas.
O longa tem boas atuações, como as de Clarissa Kiste e Mawusi Tulani, e fala sobre questões que ainda precisam ser discutidas, mas acaba se tornando um pouco arrastado e, consequentemente, cansativo com o tempo.
Isso não é um problema grande dentro da trama, que prende o telespectador durante bastante tempo e que ainda dá espaço para discussões sociais, ao mesmo tempo em que entretém. Todos os Mortos estreia no dia 10 de dezembro.