A Cor Púrpura – O Musical, machismo pós-escravidão
Situada no Sul dos Estados Unidos, em 1909, A Cor Púrpura- O Musical conta a história de Celie (Letícia Soares), adolescente de 14 anos, que acaba de dar à luz ao seu segundo filho, fruto de uma série de estupros por parte de seu pai (Jorge Maya). A criança é arrancada dos braços de Celie pelo seu pai e levada embora, assim como aconteceu com sua primeira filha.
A moça então, é dada em casamento para Mister (Sergio Menezes), um homem que na verdade deseja se casar com a irmã de Celie, Nettie (Ester Freitas), mas que acaba aceitando a irmã mais velha. Celie vai viver com Mister, mesmo que não tenha qualquer sentimento por ele, por amor à irmã, que ela quer que estude e se torne uma mulher diferente dela. Na casa de Mister, Celie trabalha, cozinha, limpa, cuida dos filhos de Mister e apanha dele com frequência.
Quando Nettie recusa os avanços sexuais de Mister, durante uma visita à casa da irmã, ela é expulsa do local. Com medo do pai, não volta para casa, desaparecendo no mundo. Nettie promete escrever à irmã todos os dias, mas os anos passam e Celie não recebe nenhuma carta dela. Assim, ela segue sua vida, aguentando o que precisa, enquanto imagina que a irmã está morta. Tudo muda para Celie quando Shug Avery (Flavia Santana), antiga amante de Mister chega à cidade.
A origem de A Cor Púrpura
A Cor Púrpura é, originalmente, um livro escrito por Alice Walker, publicado em 1982, e que ganhou o Pulitzer no ano seguinte. Em 1986, Steven Spielberg levou a história de Walker às telas, com um elenco estelar composto por Whoopi Goldberg, Oprah Winfrey, Danny Glover e Margaret Avery.
Em 2005, A Cor Púrpura virou um musical escrito por Marsha Norman, com letras e música de Brenda Russell, Allee Willis e Stephen Bray. A produção original da Broadway ficou em cartaz de 2005 a 2008, e levou para casa o Tony de melhor atriz. Em 2015, a peça ganhou um revival e dessa vez ganhou dois Tonys: melhor revival e melhor atriz. A história já ganhou montagens em Londres, Johannesburg, Amsterdam, Halifax, Rio de Janeiro e agora, São Paulo.
Celie
Celie é a protagonista e ela que nós acompanhamos durante a peça inteira. A conhecemos quando é uma adolescente que está mais interessada em brincar com a irmã, mas que tem que aturar os abusos do pai. Quando ela se casa então, passamos a acompanhar a vida dela ao lado de Mister, seu marido, que não é muito diferente da vida que ela levava com o pai. O marido ainda a afasta de Nettie, a irmã que ela tanto ama.
Uma boa maneira de resumir a vida de Celie é dizer que ela vive sempre subjugada e abusada por um homem, seja ele seu pai, ou seu marido e que como boa parte das mulheres na sua situação e na sua época, Celie acredita que isso faz parte da vida e da condição natural da mulher.
Quando Celie entra em contato com outras mulheres da região, como Sofia (Lilian Valeska), esposa de Harpo (Alan Rocha), filho de Mister, que não aceita sequer que o marido mande nela, e Shug Avery, que parece ser a única mulher capaz de exigir (e receber) respeito de Mister, Celie percebe que talvez a vida seja mais do que existir e aguentar os abusos constantes.
Um musical feminino
A Cor Púrpura é um musical extremamente feminino, uma vez que fala basicamente de personagens mulheres. Celie é a protagonista e a relação mais forte que ela mantém é com sua irmã, Nettie. Mais tarde, ela faz amigas como Sofia e Shug Avery, que são mulheres fortes e que não se deixam abater por nenhum homem.
A princípio, Celie pode soar como uma personagem fraca e conformada demais, o que pode parecer um pouco fora dos tempos nos dias de hoje, mas a sua personalidade faz muito sentido dentro do contexto social em que ela vive. Celie é uma mulher negra e pobre, em 1909, que é considerada feia demais e que deseja mais que tudo proteger sua irmã do mal do mundo.
Por outro lado, Celie é, sem dúvida nenhuma, a personagem mais forte da peça. Ela aguenta abusos físicos, psíquicos e sexuais durante boa parte da sua vida e mesmo assim não se deixa abater. Ao longo da peça, outras personagens que podem se encaixar na ideia que temos hoje de uma mulher forte aparecem, como Sofia, que não tem papas na língua, e que manda no seu marido e que mesmo quando é motivo de preconceito e de violência dá a volta por cima; e Shug Avery, uma mulher que usa da sua sexualidade da maneira que deseja e que não depende de nenhum homem para isso. As duas personagens são muito modernas para a época em que a peça se passa e para o contexto onde estão incluídas, mas são extremamente importantes na história de Celie, porque tem o poder de libertá-la.
A mulher negra e pobre
O musical também tem um ponto de vista único, uma vez que retrata a vida de uma mulher negra e pobre em 1909. Existem muitas tramas que falam sobre a vida dos negros e sobre a vida das mulheres, mas uma coisa é ser um homem negro no pós-escravidão, outra coisa bem diferente é ser uma mulher negra no mesmo período.
A peça retrata um período em que os negros são, na teoria, livres. O pai de Mister (também interpretado por Jorge Maya) é o único personagem que diz que nasceu escravo, mas com a abolição da escravidão, o corpo das mulheres ainda não era livre. Celie é tratada como uma propriedade, primeiro por seu pai, que acha que tem direito de estuprá-la, uma vez que é viúvo e que a dá para Mister junto com uma vaca; e depois por Mister, que se sente dono dela a ponto de tratá-la como uma empregada que lhe presta favores sexuais.
A trama mergulha em um buraco bem mais profundo e bem mais terrível do que o racismo, que já é por si só horrível. A peça também fala sobre machismo, sobre as relações entre homens e mulheres e como raramente elas são equilibradas, especialmente dentro daquela época, daquele contexto e dentro de uma vida onde o sustento, sempre provinha do homem.
As músicas
A versão brasileira de A Cor Púrpura, escrita por Artur Xexéo e dirigida por Tadeu Aguiar, usa as músicas do musical da Broadway, adaptadas para o português e para a realidade brasileira. Sendo assim, elas flertam bastante com o gospel e em muitos momentos de fato soam como músicas que poderiam estar sendo tocadas na igreja. Ou seja, tudo faz muito sentido dentro da trama. Outro ponto curioso é que o musical fala de diversos acontecimentos terríveis e pessoas abusivas, o que na teoria, parece não combinar com o gênero musical.
É interessante, no entanto, que a trama funcione como um musical e que prove que uma peça musical não precisa ser sempre alegre e divertida. Da mesma maneira que a música pode transmitir alegria, ela também transmite as tristezas da vida de Celie e dentro de um teatro, que é um lugar extremamente imersivo, tudo se torna muito grandioso.
O musical também tem momentos divertidos e engraçados, que não são protagonizados por Celie, mas já começa com uma música animada que apresenta os personagens e que solta logo de cara que o pai de Celie também é o pai de seu filho. A plateia mal tem tempo de assimilar essa informação horrível no meio de tanto canto e tanta dança e, por incrível que pareça, funciona. Entre as músicas cantadas no espetáculo estão A Cor Púrpura, Estou Aqui, Não Há Beleza Igual e Bolo de Milho/Mistérios de Deus.
Aspectos técnicos de A Cor Púrpura
O espetáculo é grandioso e bonito, mesmo que trate de temas difíceis e que deixam qualquer pessoa horrorizada. O palco é montado com apenas uma estrutura que se vira e que assim, muda de cenário. A mudança não é significativa, mas não atrapalha a peça, que tem uma trama tão poderosa que poderia ser encenada em um palco sem mais nada. Os personagens estão muito bem caracterizados, com figurinos de época que também não mudam muito, mas que nem se fazem necessários.
Outro grande ponto é o seu elenco. Primeiramente, é importante ressaltar que ele é composto majoritariamente por atores negros e, segundo, que ele é composto majoritariamente por mulheres. Em 2020, isso já deveria ser mais do que comum, mas infelizmente ainda não é, e uma peça que apresenta essa qualidade merece esse destaque.
Além disso, o elenco é incrível, todo mundo se sai muito bem nos seus personagens, tanto que saímos da peça com raiva de boa parte dos personagens masculinos, e o elenco inteiro parece afinado nas suas músicas e na sua dança. Claro que temos alguns destaques. Alan Rocha, que interpreta Harpo, é ótimo. Seu personagem é um alivio cômico na peça e não só funciona muito bem para isso, mas também parece ser o único homem decente dentro daquele cenário. O ator canta e dança muito bem, além de ser muito divertido. Também devemos tirar o chapéu para Letícia Soares, que interpreta a protagonista, e está completamente imersa no seu papel. Sua voz é maravilhosa e extremamente tocante.
Considerações finais
A única coisa que parece um tanto desnecessária dentro da peça é a redenção de Mister, que depois de bater, humilhar e estuprar sua esposa, canta uma música falando sobre como sofreu na infância e tenta explicar porque ele é do jeito que é. Talvez quando o livro foi escrito esse tipo de trama fazia algum sentido, mas em 2020, parece meio absurdo justificar um comportamento como o de Mister.
A Cor Púrpura é um musical sobre racismo, machismo e sobre as terríveis condições em que Celie é colocada, mas também fala sobre amor, amizade e esperança. A peça é um soco no estômago, mas não deixa de ser emocionante e bonita.
O musical está em cartaz no Theatro Net, até o dia o dia 16 de fevereiro, para mais informações, acesse: http://www.theatronetsaopaulo.com.br/pt-br/programacao/348/A_COR_PURPURA_-_CURTA_TEMPORADA.html