Sombras da Vida, uma obra-prima irretocável
Um tratado sobre o tempo, a memória e o lugar
Esse não é um filme de terror, é uma história de fantasma. O título nacional estranhamente não conseguiu fazer a tradução literal de A Ghost Story. Portanto, Sombras da Vida é um conto melancólico sobre a passagem do tempo (que per se é volátil e não-linear), sobre conexões materiais, sobre superar um sentimento e um alguém para poder seguir adiante.
O espectador acompanha a vida de um casal, onde o marido não quer sair de onde está, enquanto a esposa pretende se mudar. Os dois claramente se amam. Ele compõe músicas (uma, em especial, I Get Overwhelmed, não só é tocante, como também se relaciona à trama), ela trabalha fora. O casal às vezes ouve barulhos pela casa, um brilho no canto da sala, vida que segue. Ele morre num acidente de carro e se transforma num fantasma literal, com pano e olhos pretos, num eterno silêncio, que volta para o lar, acompanha o luto da esposa, onde o tempo passa de maneira diferente, ao longo das semanas, meses, anos.
Sombras da Vida
A A24 é de longe a melhor produtora de filmes dos últimos tempos. Casa de A Bruxa, Hereditário, Moonlight, O Farol, entre outros, ela abre espaço para que grandes diretores autorais, com estilo próprio, pouca pretensão e muita inventividade, possam criar à vontade. David Lowery é um deles. O diretor de Meu Amigo, o Dragão, da Disney, convidou os sempre excepcionais Casey Affleck e Rooney Mara, através do WhatsApp, para protagonizarem seu conto sobre a vida, através do olhar do defunto.
E mesmo que Lowery faça uso criativo de elementos sobrenaturais (sempre pelo ponto de vista fantasmagórico), como poltergeist, meios de comunicação com o além e flerte com o horror raíz, seja através da câmera parada sobre o corpo morto, seja através do vão da porta, o que o diretor realmente intenciona aqui é realizar um tratado existencialista sobre o tempo e o lugar, estudando ainda os estágios do luto (como na longuíssima cena sem cortes da mulher comendo torta no chão da cozinha) e da memória, que através da arte pode sobreviver, mantendo a pessoa viva por conta de seu legado (o monólogo de Will Oldham em dado momento é enevergante).
O que havia ali?
Para quem morou em mais de um lugar, fica a pergunta: já parou para pensar que outra família morou ali antes? E antes da família, que aquela residência tenha sido um comércio? E muito antes, um terreno baldio, na natureza selvagem? Já parou para pensar que nada dura para sempre e que em algum momento você vai também deixar aquele lugar para outro e, quem sabe, aquela casa ou apartamento, vai se tornar outra coisa em outro tempo? Ou deixar de existir?
Esses raciocínios são parte de Sombras da Vida, que muito além do além, ainda discursa sobre ciclos, das voltas que a vida e a morte dão, partindo de um ponto a outro, mas sempre voltando ao mesmo lugar, até que a superação e a compreensão de sua passagem por aqui aconteçam, e então que você possa se mudar para um outro lugar.
Aspectos técnicos
Daniel Hart cria a atmosfera ideal com sua trilha imersiva, triste e épica, em um sentido intimista, enquanto que Lowery conduz o público por uma viagem sem volta em uma produção de tela quadrangular com pontas arredondadas, como se estivéssemos vendo um vídeo antigo. Sem muito diálogo, o silêncio do filme é ensurdecedor, quase claustrofóbico e muito é compreendido através de gestos e composições ora em closes estáticos e duradouros, ora em tomadas panorâmicas maravilhosas, colocando o espectador como personagem passivo em muitas sequências.
A medida que Sombras da Vida faz a biografia de um fantasma e evidencia sua solidão através do tempo e do espaço, ainda oferece uma sensível história de apego, amor e de como a memória pode sobreviver a tudo, mesmo que algo não esteja mais ali. Sempre estará, afinal.