O Mecanismo, um retrato honesto do Brasil

A série começa antes de estourar o escândalo do Mensalão, em 2003, quando o delegado federal Marco Ruffo (Selton Mello em bom momento) pega o doleiro Roberto Ibrahim (Enrique Diaz, de longe o melhor do elenco, com uma interpretação que confere carisma e humanidade ao personagem, sem diminuir sua bandidagem) com a boca na botija, mas é obrigado a deixá-lo escapar, em uma trama que se desenrola da maneira que todo brasileiro já conhece e desemboca na Operação Lava-Jato, vindo até meados de 2014.

José Padilha é um diretor velho de guerra, executor de grandes filmes politizados, mas que nunca debandou para esquerda ou direita, questionando todas as escolhas com a mesma mão pesada. Iniciando lá em Ônibus 174, passando pelo sucesso estrondoso dos dois espetaculares Tropa de Elite, até mesmo concebendo um novo RoboCop e se alçando de vez em Narcos, o diretor traz algumas de suas marcas registradas de volta, como as narrações em off, a crueza da realidade nas cenas cotidianas e o senso de gravidade sempre a frente de qualquer situação, o que configura o mesmo ótimo trabalho de sempre, sustentado por um elenco de primeira e diálogos como soco no estômago, evidencializando as entranhas de toda a podridão do país, e a medida que ridiculariza os “vilões” (políticos e empreiteiros), também os humaniza, assim como mostra o desequilíbrio dentro da PF e não idealiza seus “heróis”, trazendo um importante equilíbrio para produção.

Ainda que Selton Mello seja o destaque do pôster, é Carol Abras a grande protagonista que conduz o enredo e a operação, rodeada de figuras complexas, que colaboram para a movimentação da trama. Padilha trabalha com reviravoltas bem feitas, mesmo dentro de um esquema onde o espectador detenha o conhecimento do andar da história, mas peca algumas vezes ao subestimar nossa inteligência, explicando detalhes de raciocínio que já tinham ficado evidentes dois episódios atrás (como quando Ruffo se dá conta do que é o mecanismo e o associa com um problema de encanamento em sua rua, e de como o processo escalonado, seja entre os grandes, ou entre os pequenos, é o mesmo — apontando inclusive a hipocrisia, já que isso é um mal intrínseco do brasileiro, e não de uma classe em específico).

Ruffo é o único personagem central inventado especificamente para fins dramatúrgicos e serve mais como um Grilo Falante, ou uma consciência geral que ajuda a movimentar as engrenagens (e justifica detalhes que ninguém detém respostas, como iniciativas de algumas das pessoas envolvidas — aqui, o personagem entra como o cara responsável por empurrar os figurões a falar). Por outro lado, não existe nenhuma dificuldade em identificar o doleiro Ibrahim, ou o juiz Rigo, ou o diretor da “Petrobrasil” João Pedro Rangel, a presidente Janete, a refinaria de Antonio & Lima, a empreiteira Miller & Bretch – e mais uma lista infindável de figuras públicas e outras tantas que foram expostas, de seus obscuros bastidores, para o noticiário de 2014 até os dias de hoje, em uma narrativa visceral e nervosa, bem embalada pela trilha intimista de Antonio Pinto, com “Bichos Escrotos” dos Titãs ecoando vez ou outra aqui e ali.

A associação com o “câncer” não poderia ser mais acertada para metaforizar o sistema brasileiro, mas outros ícones também foram bem encontrados em fractais e mecanismos de uma ferramenta inquebrável, de um país ordinário, onde não existe essa de esquerda ou direita, de partido X ou Y, quando o todo está quebrado e ninguém está limpo. Em dado momento, um dos protagonistas tem um insight, que apesar de óbvio, expõe que a série não critica lados nem siglas e que a luta, apesar de perdida, onde ninguém sai ganhando, ainda precisa ser lutada. Assim, a história chega até 2014, quando a Lava-Jato estourou na mídia e deixa para uma segunda temporada a outra parte que já conhecemos, da merda se espalhando no ventilador e espalhando seus resíduos até os dias de hoje.

O Mecanismo chega em boa hora, não a toa em ano eleitoral e relembra a população dos podres de um passado recente e tenta, a sua maneira, dizer nas entrelinhas para as pessoas pararam de adotar político de estimação ou lutar entre si — como se partidos fossem times de futebol –, pois nosso inimigo não tem nome, mas está bem diante de nós.

O Mecanismo

Deixe sua polarização política de lado e aproveite esse entretenimento sincero que não escolhe extremos, para entregar um retrato honesto do Brasil contemporâneo.

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