A Vida Invisível, o encargo de ser mulher
A Vida Invisível é livremente inspirado no livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha e é o filme escolhido para representar o Brasil no Oscar de 2020.
Guida (Julia Stockler) e Eurídice (Carol Duarte) são duas irmãs inseparáveis, até o dia em que Guida foge de casa para acompanhar um marinheiro grego.
Eurídice, que ainda espera o retorno da irmã, casa com Antenor (Gregório Duvivier). As duas irmãs, então, passam a viver vidas separadas, enquanto estão sempre à procura uma da outra.
A Vida Invisível – O livro e o filme
Por ser livremente inspirado no livro de Martha Batalha, existem diferenças muito claras entre as duas obras. O livro tem um tom mais divertido, embora fale de temas sérios e pesados, e consegue manter sua ironia do começo ao fim. A sensação que se tem quando se lê A Vida Invisível de Eurídice Gusmão é que se está escutando uma história direto da boca de quem a viveu.
Já no filme, a trama ganha tons mais dramáticos e, dessa maneira, fica mais alinhada com o tema que a história trata. O filme também é narrado (e datado) pelas cartas que Guida escreve a Eurídice e que a irmã nunca recebe, por isso tem um tom um pouco mais formal, quase como se fosse um épico.
Essa é, certamente, uma maneira interessante de tratar uma história que é tão comum e ao mesmo tempo tão extraordinária. O filme passa por vários gêneros, flertando com eles, desde o dramalhão, passando pela comédia e chegando ao suspense. O espectador sabe, o tempo todo, onde as duas irmãs estão, embora uma não saiba do paradeiro da outra e isso se torne um mistério em suas vidas.
Eurídice e Guida
A maior força do filme é, certamente, a relação das irmãs. Guida e Eurídice são retratadas como opostas desde o começo: Guida é mais descolada, mais vaidosa e chama a atenção masculina o tempo todo. Ela não se esconde e aceita cantadas, mesmo que não tenha a intenção de se entregar a elas. O público, portanto, não se surpreende quando Guida sai de casa escondida dos pais, mas encoberta por Eurídice, para encontrar o namorado e nunca mais volta para casa, afinal, Guida é uma mulher destemida, que quer conhecer o amor e o mundo e que não tem medo de se decepcionar.
Eurídice, por outro lado, é tímida e retraída, não deseja encontrar o amor, se casar ou ter filhos. Ela quer estudar piano na Europa e se esforça para isso. Naturalmente, a vida acaba a empurrando para um casamento que ela não deseja e que vai lhe trazer mais desgosto do que felicidade. Diferentemente de Guida, Eurídice se deixa levar pela vida, aceitando o que lhe é entregue e guardando tudo para si mesma.
Tanto Eurídice, quanto Guida, são empurradas para vidas que não desejaram e que as deixam infelizes. Mas elas se mantêm acreditando que embora a felicidade não venha para si mesma, ela está presente na vida da irmã. As duas irmãs travam as mais diversas relações, com namorados, maridos, amigas e filhos, mas nenhuma ligação parece superar o vínculo fraternal que existe entre as duas.
Um filme uterino
Segundo Fernanda Montenegro, que interpreta Eurídice mais velha em uma participação especial, A Vida Invisível é um filme uterino, e segundo a autora do livro, essa é a história das nossas avós. A Vida Invisível realmente retrata a vida das mulheres, falando de uma época especifica, mas que ainda ecoa até hoje.
As mulheres, certamente, são as protagonistas do filme, e o espectador acompanha basicamente as suas histórias, ao mesmo tempo que assiste aos prazeres e as (muito maiores) dores de ser mulher. Nesse aspecto, a frase “no começo dói, mas depois você acostuma”, que é usada no filme para descrever diversas situações da vida das mulheres, desde a primeira relação sexual, até a amamentação, pode se referir ao contexto todo de ser mulher.
Embora o filme nos entregue personagens femininas realistas e com as quais é possível se relacionar e até se reconhecer, as mulheres em A Vida Invisível estão colocadas em nichos muito claros: a mãe solteira, a esposa de alguém, a mãe de alguém e aquela que não pode ser mãe.
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Essas personagens poderiam facilmente cair em estereótipos óbvios e que as reduzissem, se o filme não se preocupasse em fazer uma crítica à maneira com que as mulheres eram tratadas na época e, em alguns casos, ainda são.
Esses papéis também são, na maioria dos casos, impostos por homens que, no filme, estão sempre empurrando e forçando as mulheres a lugares e situações que elas não desejam. Guida sai de casa para ficar com o namorado e acaba sozinha e “desgraçada”, enquanto Eurídice é jogada em um casamento que não deseja, com um homem que a proíbe de estudar e nenhuma das duas é feliz.
Aspectos técnicos de A Vida Invisível
O filme é cuidadoso, em todos os seus aspectos. O roteiro é bom e bem desenvolvido, embora não seja completamente fiel ao livro. O que acontece é que o filme usa os personagens e algumas das tramas do livro para desenvolver sua própria história.
A trama se passa nos anos 50 e, por isso, tem uma caracterização da época. O figurino é composto por roupas da época, e não roupas fabricadas para o filme, o que dá um ar de realidade. Outro ponto relevante é que a produção se preocupou em usar cores que normalmente não são associadas aos anos 50, o que tira a ideia de uma década de 50 caricatural. O filme também não é datado, pois se passa em uma época, mas não dialoga só com aquela época.
A Vida Invisível tem um elenco que dá conta do recado e que passa realidade aos seus personagens, mas como é um filme basicamente feminino, as atuações que mais chamam a atenção são as de Julia Stockler, Carol Duarte e claro, Fernanda Montenegro.
A Vida Invisível é um filme emocionante e bonito, que quer falar sobre a relação de amor entre duas irmãs, mas que, ao mesmo tempo, acaba falando sobre o papel e os encargos da mulher na sociedade. O filme entra em cartaz no dia 21 de novembro.