American Gods, entre a polêmica e o brilhantismo

A trama segue Shadow Moon, um ex-presidiário que se torna guarda-costas e companheiro de viagem de Mr. Wednesday, um homem misterioso com a missão de reunir as forças dos antigos deuses de origens bíblicas e mitológicas para lutarem numa guerra contra as novas divindades, reflexos do amor da sociedade moderna por dinheiro, tecnologia, mídia, celebridades e drogas.Com esse material em mãos, o produtor Bryan Fuller realizou uma série fantástica, ao mesmo tempo crítica social, com flerte aos road movies (e seu toque de midas é evidente, do visual saturado, a violência gráfica e exagerada, já vistos em outros seriados, como Hannibal, Pushing Daisies e Dead Like Me). Michael Green se uniu a ele (o roteirista conta com grandes obras no currículo, de Logan a Blade Runner 2049, tendo escorregado somente em Lanterna Verde), conseguindo se manter fiel ao livro original de Neil Gaiman (seu primeiro romance após uma marcante fase nos quadrinhos com Sandman, onde ele repete a exploração de terreno de fantasia urbana, colocando o fantástico dentro do contemporâneo), mas abrindo novas janelas que colaboram para a qualidade por aqui.

American Gods nada mais é do que uma espetacular metáfora sobre imigração (e os EUA o palco ideal para o assunto), por isso o uso de divindades de todas as culturas acaba funcionando muito bem, ainda mais com o acerto da produção em expandir o tema para debater xenofobia, racismo, homofobia, machismo e misoginia de maneira surpreendente, sem ser um mero papo panfletário, mas sim importante e completamente dentro do contexto. Gaiman já disse em entrevistas que ele teve a ideia para a história assim que saiu da Inglaterra e se mudou para a América do Norte, imprimindo nas páginas sua sensação como estrangeiro. Green extrapola o argumento, abrilhantando ótimos diálogos em episódios marcantes (como o de racismo ancestral em um navio negreiro, ou o explícito sexo gay entre um muçulmano e um jinn, além da metáfora machista e misógena envolvendo a figura de Bilquis).

Usando de inteligentes recortes de tempo, a série mostra o que o livro apenas esboça, como o ponto de vista de Laura Moon (e sua jornada ao lado do Mad Sweeney, um ponto especial a parte), o background de algumas antigas divindades imigrantes (é lindo de ver as boas sacadas de como cada um se adaptou ao novo mundo), e colocou em xeque a cultura armamentista norte-americana ao utilizar o tema como pano de fundo de todo o sexto capítulo. O último episódio, com várias versões de Jesus Cristo (o caucasiano, o mexicano, o negro etc), além de piadas internas envolvendo a divindade bíblica — mas tomando o cuidado para não ofender os mais sensíveis –, não só acerta por fundamentar algo como muitos enxergam a coisa, como é brilhante na execução. Aqui, os temas não são colocados para “criar polêmica”, mas sim para evidenciar contextos intrínsecos ao presente momento da sociedade, e essa história não poderia estar mais atual.

As metáforas se expandem, não ficando só no terreno social. American Gods também metaforiza o autoconhecimento, o luto, a confiança e a retomada da vida depois de uma grande avalanche. A história toca no cerne da humanidade e faz isso de um jeito tão sensível e implícito, que aprofunda a questão de um jeito inesperado e bem-vindo.

O elenco é primoroso. Ricky Whittle acerta no tom mundano como Shadow, o único deslocado e perdido no enredo, que passa todos os 8 episódios se perguntando o que está acontecendo, quase uma versão crua e adulta de Alice, aquela do País das Maravilhas. Peter Stormare como Czernobog, Orlando Jones como Anansi, Chris Obi como Anubis roubam as cenas em que aparecem, completamente adequados aos seus papeis. Crispin Glover encaixou bem no estranhíssimo Mr. World (que na verdade é alguém bem mais famoso de uma mitologia, vocês verão), enquanto que Bruce Langley como Technical Boy representa completamente um millenial. Media é interpretada por Gillian Anderson, maravilhosa aqui, que só não é a melhor coisa da série, porque ainda temos Emily Browning como Laura Moon e Ian McShane (como Odin… cof, cof, Mr. Wednesday, mas era tão óbvio, não?): os dois atores estão nos maiores papéis de suas carreiras, entregues plenamente as figuras que encarnam (ela em sua apatia mórbida, que era morta em vida e agora está mais viva enquanto morta; ele impressionando num perfil carismático, sábio e ao mesmo tempo herói e vilão em sua narrativa) e antagonizam na jornada de maneira improvável, inclusive sendo os responsáveis pelo grande gancho no final da primeira temporada.

American Gods é uma série surrealista de primeira, embalada por um blues viciante, que prova algo que no fundo todos já sabem: a necessidade faz o deus.

American Gods

Um dos raros casos onde a adaptação se sai melhor que o original, American Gods é muito mais do que a embalagem apresenta.

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