Atravessa a Vida – documentário de João Jardim
Sempre admirei a potência do nordestino, segundo a definição por Aristóteles e que aparece em Atravessa a Vida, documentário de João Jardim (Lixo Extraordinário): a capacidade que cada um tem de ser e fazer coisas no futuro.
Certa vez li em algum lugar que a alimentação típica do Nordeste, rica em fosfato, poderia explicar a alta capacidade de articulação, a clareza mental e o desempenho intelectual acima da média dos nordestinos.
Como matemático que sou, atesto: grandes profissionais e alguns dos maiores da minha área saltam dessa parte do Brasil. Sou, eu mesmo, filho de baiano, e sempre admirarei meu saudoso pai por seu nível de esclarecimento sobre a natureza e as coisas do mundo.
Sou, também, um professor de ensino médio e de cursinho pré-vestibular. A realidade que vemos na tela a partir deste Atravessa a Vida é cotidiana para todos aqueles que abraçam a causa de conduzir jovens adultos à vida exigente das responsabilidades vindouras: medos e ansiedades brotam e são assustadoramente semelhantes em todas as classes sociais.
Atravessa a Vida
Este documentário da Globo Filmes, participante do Festival É Tudo Verdade, dirigido pelo habilidoso Jardim, envereda no mundo escolar presente também no excelente Eleições (2019), de Alice Riff, usando o mote “passar no Enem” para exibir, através de relatos e posturas corajosas dos adolescentes da Escola Estadual Dr. Milton Dortas, na cidade de Simão Dias, em Sergipe, características ambientais que constroem as suas próprias ansiedades.
A partir de falas realmente tocantes (a lembrança do vínculo com o pai que, ao se separar da mãe, constrói uma nova vida com outra família e deixa de cultivar o afeto com a filha que o ama; o medo de que a mãe um dia diga a seu filho que não conseguiu dar conta, a despeito de toda a luta, de se realizar com a vida), o filme exibe os alunos de tal modo que todos aparecem maravilhosamente bonitos na tela. A tristeza vem, nesse caso, acompanhada de uma beleza romântica palpável. São belos e malditos, como na música do Capital Inicial.
Personagens da vida real
A quantidade de relatos de mães abandonadas pelos pais é alta. A figura materna é claramente valorizada no documentário, e os vínculos com a mãe ficam claramente reforçados. Via de regra, o que vemos são famílias disfuncionais por culpa do homem que não cultiva laços, que tem vícios, que é fraco, em contraponto com mães solitárias e guerreiras. Mas o filme acerta sempre ao focar exclusivamente nos jovens: nenhum pai ou mãe aparece, os únicos adultos presentes na tela todo o tempo são os profissionais da escola, o ambiente no qual eles passam a maior parte do seu tempo.
O medo de abandonar esse casulo social em prol do ingresso na faculdade fica claro sobretudo na fala de uma aluna que diz que tem medo do que virá, mas que ela quer passar por isso mesmo assim. Como as borboletas, impelidas a voar porque é a natureza das coisas.
A atuação dos professores e direção da escola está explicitada na tela: momentos de abnegação e entrega, mesmo que com fragilidades profissionais visíveis (a professora que promove uma roda de conversa sobre suicídio mas que não aguenta o tranco do que ouve; o professor que chega à sala de aula meia hora atrasado; outro que simplesmente vai embora para casa sem avisar; o uso óbvio e batido de músicas do Legião Urbana e de Chico Buarque para conduzir discussões superficiais – Dado Villa-Lobos é responsável pela trilha sonora).
A escola também é personagem
Os problemas do ambiente físico e logístico da escola não são tratados mais a fundo, e isso é proposital: em vez de servirem meramente para desancar o sistema público de ensino, eles servem apenas como o espaço de criação dos laços sociais dos jovens e de suas angústias. É ali que as amizades de muitos anos são geradas e, para o filme, a ruptura desses laços representada pelo ingresso à faculdade e à vida adulta é que importa.
O que nos é oferecido de informação do colégio ainda permite que nos indignemos; mas serve principalmente
como o necessário para tornar críveis as ansiedades dos secundaristas. Há sobretudo o simbólico: a escola está em obras, como se em uma transformação que acompanha a mudança de estágio representada pelo ENEM.
Então, ficamos na torcida por aqueles jovens, lindos e sensíveis, e a sensação de que eles merecem ser satisfeitos com a vida; mas fica também a angústia de que grande parte deles, no fim, não conseguirá. E os protagonistas de Atravessa a Vida, no fundo, parecem saber disso.