Beastars – 1ª temporada, produção sensível e brilhante
A masculinidade tóxica em extinção
Produzido impecavelmente pelo Studio Orange, que adapta o mangá da artista Paru Itagaki, publicado pela Shonen Champion (e que vem angariando um prêmio atrás do outro), a história de Beastars se passa em uma escola situada num mundo habitado por animais antropomórficos (tal como em “Zootopia” da Disney, mas incluindo pássaros, anfíbios e lagartos, ao invés de somente mamíferos).
O lobo Legoshi não só é um personagem extremamente complexo, como também desde já um dos maiores protagonistas masculinos já criados em todos os tempos. Ele merece um estudo de caso por variados especialistas, é sério. Longe de qualquer perfeição idealista, ele também não é o típico loser.
Itagaki mira em outro alvo, desconstrói a ideia do macho-alfa e compõe o que deveria ser normativo (e talvez venha a ser num futuro próximo): um cara desprovido de masculinidade tóxica, sensível com colegas de ambos os sexos, respeitoso e gentil para com todos, absolutamente nada machista, nem macho palestrinha, educado, responsável e extremamente empático, respeitando o espaço do outro sempre. Mas ele tem 17 anos, ainda não teve sua primeira vez. Ou seja, ele está com o tesão à flor da pele, precisa conter seus extintos e descobre em uma coelha-anã sua presa ideal e, muito mais do que isso, uma paixão sem igual.
Beastars
As ideias que a autora propõe são todas brilhantes e bem sacadas. A começar pelo uso do ambiente colegial para narrar sua trama, que mesmo juvenil, passa longe do pueril e jamais cai em qualquer clichê do gênero (seja japonês ou americano), nem mesmo os outros estudantes coadjuvantes caem qualquer estereótipo.
Então não temos o bullie, a patricinha, a nerd, a gostosa, o galã, nada disso. Eles até existem, mas seus perfis são distribuídos e se apropriam de figuras improváveis… exatamente como no mundo real, onde ninguém se encaixa num único padrão.
Louis, que é o segundo personagem mais importante da obra, é outro bem complexo, sendo ele um cervo e o predileto para o título de Beastar (uma figura carismática de grande influência no mundo), que assume o protagonismo do teatro escolar (no qual Legoshi é apenas o iluminador, preferindo atuar discretamente nos bastidores) e esconde um triste passado, intrínseco a sua condição de presa.
As ideias por trás
Logo nos primeiros minutos de Beastars, testemunhamos o assassinato da alpaca Tem pelas mãos de um carnívoro envolto pelas sombras. Não vemos a identidade do culpado e nem a produção tem pressa em resolvê-la, já que passa os 12 episódios sem investigar o caso, sem lhe dar qualquer resolução.
Isso justifica a real intenção da autora, que não de é criar uma história de suspense ou serial-killer, mas sim estabelecer uma condição bastante interessante desse cenário: carnívoros e herbívoros convivem em igualdade depois de séculos de evolução e dentre as leis vigentes no mundo, está a de que todos devem se alimentar de frutas, legumes e carne… de soja.
Comer carne de verdade é crime (e ainda tem um mercado negro que oferece isso), além de ser também um tabu. Portanto, muitos carnívoros vivem no limiar de seu instinto, com alguns lidando bem com isso, enquanto outros sofrem pela dieta eterna, levando alguns a sucumbir (o que gera assassinatos, que se dão justamente com alguém devorando o outro). Mais um ponto que se abre em paralelo com o nosso meio é que quem consome carne aqui, é como se estivesse usando drogas ilícitas.
Uau, que diferente!
Outras belas sacadas de Paru Itagaki estão espalhadas ao longo do enredo de Beastars: como o melhor amigo do lobo ser um cão, é claro; quando se tornam adultos, as aves tem autorização para voar (dirigir); uma caloura galinha se dedica diariamente à saúde para gerar os melhores ovos, que ela usa como lucro extra na rotina; além também de preservar a natureza de cada espécie.
A sensibilidade do focinho de um panda, a troca de chifres de um cervo, a maneira como um gato move a cauda etc. E tudo isso sem perder a “humanidade” super realista dos movimentos de cada personagem, outro dos trunfos do Studio Orange, não só no design (que respeita o belíssimo e arrojado traço da mangaka), como também na aplicação de computação gráfica, bem disfarçada em uma animação de alta qualidade.
Questões até mesmo filosóficas
Por fim, a coelha-anã Haru, apesar de parecer pouco, é a peça fundamental da trama, não só pelo envolvimento que tem com Legoshi e Louis, mas também por tudo o que representa na ambientação. Em dado momento, ela solta uma poderosa frase: “a minha vida toda eu sempre fui ração para todos os os tipos de caras”.
Com a vida sexual super movimentada, ela é vista como “vadia” pelas garotas e “fácil” pelos caras, que desconhecem seu verdadeiro problema. Sendo ela uma espécie de presa suprema (até mesmo diante de outros herbívoros) e sendo bem pequena e aparentemente frágil, sempre é vista como coitada por todos, o que fez Haru encontrar no sexo um nível de igualdade entre os demais.
O que ela desperta em Legoshi é muito mais interessante e clinicamente curioso, tanto de natureza humana quanto obviamente animal, já que ele é colocado em dualidade diante dela: que é ao mesmo tempo uma presa perfeita para o lobo, mas também seu grande amor.
Tem defeitos?
Talvez, o único “problema” da série seja em certa morosidade aqui e ali, que faz parte das escolhas narrativas, que valorizam momentos de silêncio e de autorreflexão (ao menos os três protagonistas tem muitos monólogos), mas nunca gratuito, levando sempre a uma bela ideia em seguida, que soma ao roteiro e faz com que seus personagens evoluam e ensinem o público pelo caminho.
Por isso, deixe seu preconceito com “furries” de lado e invista nesse seriado. Beastars evita todos os maneirismos típicos de animes. Então nada de suorzinho escorrendo, versão SD, fanservice aleatório etc. Até mesmo cenas de sexo, de sensualidade ou de brutalidade são tratados ou naturalidade ou com sensibilidade. Não há fetiches por aqui, a não ser em contar uma boa história.
Mais humano do que isso, impossível.
Beastars - 1ª temporada
BEASTARS está disponível na Netflix como Beastars - O Lobo Bom