Blade Runner 2049

Do primeiro ao último minuto, cada momento foi planejado com um propósito além do visual (que é inegavelmente espetacular), mostrando aspectos ora nas entrelinhas, ora explicitamente, sempre com camadas sobre camadas, onde a história muitas vezes se conta através de olhares e contexto espaço-temporal, sem maiores necessidades de explicações verbalizadas. É sim uma obra dependente de seu antecessor, mas isso só torna a experiência melhor (e no sentido do espectador ter de rever — ou ver pela primeira vez — o filme de 82 para captar as nuances que se perderam com o tempo).

Bem alocado cronologicamente (incluindo aí o curta animado “Blackout 2022”, que eu volto pra falar outra hora), Blade Runner 2049 desenvolve sem pressa cada um de seus personagens, tornando todos eles interessantíssimos, mesmo que alguns tenham pouco tempo de tela. Sem subaproveitar nenhuma figura, o diretor sabe onde encaixar cada peça desse grandioso e belíssimo mosaico, para que ela colabore para o andamento da narrativa e não perde nenhum detalhe, que vai muito além do easter-egg, nos permitindo remeter ao original sempre que cada ícone surge. E estão ali os carros flutuantes, o cenário futurista e sujo repleto de grifos, kanjis e hologramas e a poluição predominante; os origamis, a chuva enquanto poesia, os dilemas existencialistas repletos de conteúdo agregante ao enredo, a atmosfera noir permeando o todo etc.

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Que me perdoem os colegas, mas Denis Villeneuve é muito mais diretor do que Ridley Scott (um cara impressionante, mas de carreira instável) — que ainda que tenha sido responsável pelo grande marco da FC no começo dos anos 80, sofreu com 7 versões distintas para seu desfecho e vejo que um autor, quando não se decide sobre o final, acaba perdendo a mão de todo o miolo. Algo que não acontece por aqui, considerando que Villeneuve, além da carreira estável repleta de somente ótimos filmes (dos quais ele se supera a cada lançamento), conduz a continuação com mão firme, propriedade de roteiro, personalidade na direção e um desbunde visual acima da média, sem jamais desrespeitar suas origens, dando continuidade ao lado humano da coisa, sem desviar da investigação precisa e das questões realmente relevantes.

Assim como o primeiro filme, Blade Runner 2049 também trata, de maneira primorosa, os dilemas da criação, que toda FC decente lida, em maior ou menor grau. Aqui, o flerte com o Prometeu Moderno e Pinóquio é evidente e bem executado, com Wallace fazendo as vezes de um Victor Frankenstein, enquanto que Deckard pode ser um tipo de Gepeto, tendo todos os replicantes como seus golens ou bonecos de madeira, figuras sem alma que sofrem como qualquer um e choram quando perdem o outro, ou que só buscam a paz em recantos isolados, ou procriam à sua maneira, ou vivem a margem da sociedade por um bem que acreditam ser o maior. Temos o barro para fortalecer essa ideia e o olhar vazio para gerar o contraponto e nos deixar na dúvida sobre suas identidades. E veja só, o diretor não perde a mão e nem o estilo, repetindo aqui o grande truque de nos enganar, ao mostrar que nem tudo é o que parece, mesmo com horas depois tendo provado algo que nunca foi exatamente real. E essa não foi sempre a essência da adaptação de Philip K. Dick, afinal?

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O K de Ryan Gosling não emula o Deckard de Ford, o que é bom, pois ele faz uma entrega completamente nova, mais contida, melancólica e a beira de um vazio existencial bastante curioso, que vai levá-lo para uma jornada em busca daquela resposta que qualquer ser humano procura: a de si próprio. E quando a resposta vem na forma de embuste, pouco resta a não ser os caminhos de uma típica e tão bem-vinda tragédia grega, mas não sem antes ter os acertos de contas e as pontas soltas bem resolvidas, em uma sensibilidade singular. Infelizmente, ninguém é especial.
Cada cena é um deleite, cada diálogo um primor, cada momento é inesquecível. Dentre as sequências, vale pontuar a primeira, emocionante como o clímax do primeiro filme e brutal ao mesmo tempo. Os das passagens pela Califórnia futurista e escura e do cenário alaranjado de uma decadente Las Vegas, incluindo aí um horripilante hotel. O do tão esperado encontro entre blade runners. Dos momentos sufocantes e belíssimos dentro da unidade de Wallace. E da magnífica e sexy cena de amor entre um replicante, uma humana e um holograma, numa atualização formidável de um ménage à trois. Vale lembrar ainda da impressionante trilha sonora, onde um inspirado Hans Zimmer consegue emular Vangelis com muita presença em cada enquadramento.

A FC jamais será compreendida nas telonas, menos ainda pela grande massa, preguiçosa demais para se esforçar a compreender ou aguentar o ritmo que uma produção do tipo pede, por isso ela sempre ficará relegada a margem. Foi assim há 30 anos, continua assim tanto tempo depois e o quadro não vai mudar quando chegarmos no futuro que os autores tanto vem provando alcançar. Por isso, o nicho. E à maneira do longa de 82, este 2049 também polarizou as opiniões — aqueles que chegaram ao fim da sessão aplaudiram de pé, mas nem todos resistiram ao ritmo lento e longo e por isso o filme vem sendo abandonado e logo estará fora de cartaz… tal qual foi o primeiro. E tal qual seu antecessor, este Blade Runner precisa de tempo para ser maturado, para ser compreendido e, acima de tudo, precisa de tempo para ser valorizado e ganhar o mundo, como o outro ganhou.

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E é inevitável, Blade Runner 2049 se tornará cult também e já se edifica como uma incontestável obra-prima hollywoodiana e um dos maiores filmes da década. Aplausos, por favor.

 

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