Bright, trama policial e criaturas fantásticas

Os acertos de David Ayer começam na construção de mundo. Ele estabelece as bases do cenário no princípio e vai distribuindo isso ao longo do enredo, tornando crível e bem resolvido cada solução, cada criatura, cada maneirismo e elemento lendário e histórico, embalados na sua sempre ótima fotografia pálida, cheia de crueza e vísceras.

É interessantíssima as associações criadas. Enquanto humanos continuam sendo intrinsecamente humanos (mais no sentido pejorativo da ideia), os orcs remetem imediatamente a uma cultura negra norte-americana (mas que historicamente, se aproxima mais aos judeus) — vivendo a margem da sociedade, sofrendo preconceito explícito, sobrevivendo em guetos e nas beiradas das cidades, enquanto tem na rotina o espancamento policial. Por outro lado, os elfos representam a elite, e são superiores inclusive em habilidades físicas e na relação aproximada com a magia. Se criarmos paralelos, além do âmbito em que vivemos, e também com os mitos, veremos que faz todo sentido colocar os orcs e os elfos nessas respectivas posições. Eles também são assim na fantasia.

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Ayer já tinha realizado ótimos filmes policiais antes, dirigindo Os Reis da Rua e Marcados para Morrer (e anterior a eles, roteirizado ícones como Dia de Treinamento, o primeiro Velozes e Furiosos e S.W.A.T.). Existe um histórico por trás desse criador que justifica todo o sucesso que ele conseguiu atingir em Bright. Em outros paralelos, colocando todos esses filmes lado a lado, vemos o bom trabalho de dupla policial cuidando de casos rotineiros e tendo de lidar com corrupção policial, guetos latinos, preconceito em nichos sociais, um anti-herói nunca isento de erros como protagonista, um parceiro equilibrando as coisas com sua ingenuidade e pureza moral, e um McGuffin funcional, que colabora o tempo todo para movimentar a trama, colocando outras figuras de interesse atrás do mesmo objetivo, sem a bobagem do “Bem vs Mal”, já que todos os gatilhos tem propósitos bem fundamentos e em mais de um sentido.

Por isso mesmo, todos os personagens cativam por aqui. Muito além das maquiagens bem realizadas e que ornam no cenário realista imposto (que não deve nada aos antigos feitos do diretor, menos ainda a crueza de um Cidade de Deus). Cada figura em tela funciona, se justifica e não sobra. Da dupla protagonista que tem forte química (graças ao ótimo trabalho de Will Smith e Joel Edgerton, que estão super a vontade em seus papeis), indo para os complexos elfos (que se dividem entre vilões, federais e vítima mítica), até outros policiais (preconceituosos e corruptos, algo que vimos recentemente também em Zootopia) e orcs (que se viram como podem, mas também existem os tomates podres), em uma Los Angeles decadente e fragmentada, que comporta várias raças e criaturas (das fadas fazendo as vezes de gafanhotos, dos centauros como cavalaria, a força especial de magia no lugar do FBI e dragões nos lugares de helicópteros), com um elenco que não só acredita na trama, como também em cada personagem e todos juntos conduzem a narrativa para frente, entregando uma aventura que é ao mesmo tempo policial, de fantasia e autenticamente escapista, com bons momentos das melhores obras oitentistas.

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A lindíssima Tikka realmente poderia ter tido mais tempo em tela. Quando surgiu, a princípio, achei que ela fosse ser uma espécie de Leeloo de O Quinto Elemento (e há vários detalhes que indicam para isso), mas ela acaba um pouco de escanteio, por isso espero que a aproveitem melhor na já confirmada continuação. Kandomere e Dorghu também surpreendem em seus papeis dúbios, que só ficam mais claros no desfecho. No final das contas, o filme não se perde com temas panfletários. Temos ali o racismo imperando como tema focal, mas ele tão bem distribuído no meio do enredo, que tudo funciona organicamente ao redor, sem perder os bons ares de entretenimento acima de tudo.

Utilizar uma varinha de condão como uma espécie de mini bomba atômica (mas é mais do que essa metáfora faz parecer, já que o instrumento também realiza qualquer desejo) é praticamente genial e convence facilmente o espectador que qualquer um seria capaz de qualquer coisa por ela. E mesmo que o cenário,  seja sujo e realista, o diretor conseguiu encontrar equilíbrio para colocar seitas no miolo, balas contra magia, piruetas acrobáticas contra brigas de rua, peitinhos em paralelo com presas, estabelecendo também algo maior do que essa ótima primeira história, que se fecha em sim, mas permite ganchos para uma franquia promissa.

Sendo assim, David Ayer se redime do fiasco de Esquadrão Suicida (muito mais culpa de interferência de estúdio do que dele, afinal) para realizar um dos melhores filmes do ano e também do Netflix, a medida que traz uma história criativa, daquelas que eu sinceramente gostaria de ter criado.

Filmaço! Ignorem os chorões e se divirtam com algo verdadeiramente ótimo.

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