Ela Disse
O caso Harvey Weinstein
O ano é 2017 e a jornalista investigativa Jodi Kantor (Zoe Kazan), do New York Times, recebe uma informação sobre um possível caso de estupro envolvendo a atriz Rose McGowan (voz de Kelly McQuail) e o produtor Harvey Weinstein (Mike Houston). McGowan dá detalhes do acontecido a Jodi, mas não quer que ela use a história em uma matéria. Depois de uma investigação, Jodi entra em contato com outras atrizes que também teriam sido assediadas por Weinstein, como Ashley Judd (interpretada por ela mesma) e Gwyneth Paltrow (voz da própria Paltrow), mas como McGowan, nenhuma delas quer vir a público.
Frustrada, Jodi procura Megan Twohey (Carey Mulligan), outra jornalista do mesmo jornal, que alguns anos antes tinha publicado uma reportagem sobre acusações de assédio sexual envolvendo o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Megan resolve ajudar Jodi e as duas partem em uma investigação que cobre décadas e cruza oceanos para entender o tamanho dos crimes de Weinstein.
Ela Disse é inspirado em uma história real e retrata o trabalho das jornalistas Megan Twohey e Jodi Kantor para desmascarar os casos de assédio moral e sexual do produtor de cinema Harvey Weinstein. O caso motivou a criação do movimento Me Too.
Um filme feminino
Parece natural que um filme que fala sobre abuso sexual de mulheres fosse narrado do ponto de vista feminino, mas Ela Disse se esforça bastante nesse aspecto. Como o filme é inspirado em eventos reais, chega-se a duas conclusões, ou as pessoas envolvidas nos acontecimentos, para além das duas jornalistas, eram majoritariamente mulheres, ou o longa fez algumas adaptações.
De qualquer maneira, funciona. A trama acompanha duas jornalistas, Jodi e Megan, que esbarram nos casos de assédio sexual e moral cometidos pelo poderosíssimo produtor de cinema de Hollywood, Harvey Weinstein. Jodi é um pouco mais inexperiente e pede a ajuda de Megan, que já tinha investigado as acusações de assédio sexual contra Donald Trump, e o fato de termos duas mulheres investigando o caso já é um dos motivos pelo qual Ela Disse é um longa que pretende falar de mulheres e contar essa história do ponto de vista feminino.
As vítimas de Weinstein, que são atrizes famosas e assistentes do produtor e da Miramax, produtora dele, também são mulheres e várias delas ganham bastante tempo de tela. Ashley Judd interpreta a si mesma e aparece em uma cena narrando tudo o que aconteceu com ela. Gwyneth Paltrow empresta a sua voz, mas também somos apresentados a casos envolvendo as assistentes Zelda Perkins (Samantha Morton), Laura Madden (Jennifer Ehle) e Rowena Chiu (Angela Yeoh). Essas mulheres têm a chance de contar suas histórias. Weinstein, por outro lado, passa boa parte do filme apenas sendo citado, só ouvimos sua voz no telefone e, quando ele aparece, apenas o vemos de costas, ou seja, o filme deliberadamente se recusa a dar qualquer tipo de spotlight a Weinstein, como se, finalmente, tirasse seu poder.
Para além disso, a produção esbarra em outras questões que dizem respeito às mulheres, como a maternidade, que aqui não é romantizada e é retratada de maneira realista. Jodi é mãe de duas meninas e Megan acabou de ter uma filha e passa por um processo de depressão pós-parto. Em uma conversa com a colega de trabalho, ela descobre que Jodi passou pela mesma coisa quando sua filha mais velha nasceu. A maternidade também é uma questão importante para Laura, que concorda em depor depois de pensar que não quer que suas filhas, no futuro, passem pela mesma coisa que ela passou.
O caso Weinstein
Mas claro que Ela Disse tem como intenção retratar da maneira mais fiel possível a investigação jornalística sobre o caso Weinstein e esse é o foco principal. O filme segue tanto Jodi, quanto Megan enquanto elas entram em contato com uma série de pessoas, na sua maioria mulheres, que podem ter algo a dizer.
Elas conversam com vítimas, com advogados e parceiros de Weinstein. O filme é bem realista e bem descritivo, as mulheres narram com detalhes tudo que lhes aconteceu. Em alguns casos, como os de Laura e Rowena, vemos até alguns flashbacks, mas é importante ressaltar que o longa não tem nenhuma cena explícita de abuso sexual ou de estupro, esses acontecimentos são apenas narrados, certamente a intenção é de não sexualizar crimes ou momentos traumáticos e terríveis. Mas ainda assim este é um filme pesado.
Ela Disse lembra filmes como Spotlight: Segredos Revelados, que também acompanha jornalistas investigando casos de abuso sexual e segue mais ou menos a mesma receita: depoimentos de vítimas, ligações anônimas ou não com dicas, fontes secretas, ameaças e um trabalho árduo das jornalistas, enquanto elas se envolvem cada vez mais em uma história terrível e que é muito maior do que elas imaginavam inicialmente.
Aspectos técnicos de Ela Disse
O roteiro é relativamente simples, ainda que seja bem competente. O filme segue uma investigação jornalística do começo até o fim e o público acompanha essa investigação junto com as duas jornalistas. É fácil se prender à história, ainda que o caso Weinstein seja recente e que boa parte da audiência ainda se lembre dele, o filme tem detalhes e tem o ponto de vista das vítimas, o que é interessante e tocante. A escolha de não dar voz a Weinstein – ele só fala com as jornalistas para negar o que fez e as ameaçar, e o mesmo se dá com Trump – é maravilhosa, já que o poder sempre foi dele. O filme quer inverter isso, o poder agora é das mulheres que foram vitimizadas por ele.
Existem alguns problemas, no entanto, em “ficcionalizar” um evento tão recente quanto esse, pois boa parte das pessoas envolvidas ainda estão vivas e talvez não queiram se ver na tela de cinema. É interessante que Ashley Judd apareça interpretando a si mesma e que Gwyneth Paltrow, que só fala com as jornalistas pelo telefone, empreste a sua voz, assim elas mesmas contam as suas histórias, como em um documentário. Rose McGowan, que também só fala com as jornalistas pelo telefone, por outro lado, é dublada por outra atriz, possivelmente porque não quis participar do filme.
Claro que Ela Disse é uma grande produção e que existe uma tentativa bem-sucedida de caracterizar essas pessoas e esses lugares da forma mais precisa possível. As atrizes que interpretam as protagonistas não são especialmente parecidas com as pessoas reais, mas estão bem caracterizadas. Mike Houston, que interpreta Weinstein, mesmo de costas, é muito parecido com o Weinstein real.
O filme é longo, mas não se torna cansativo em momento algum. O longa conta também com boas atuações, especialmente de Mulligan e Kazan. O resto do elenco também está muito bem, mas tem menos tempo de tela.
Sem dúvida nenhuma, os fatos narrados no filme são importantes, não só porque a investigação jornalística teve papel na condenação de Weinstein – ele foi condenado a 23 anos de prisão e hoje está preso e ainda pode ser condenado por mais acusações em Beverly Hills e Los Angeles – e expôs para o mundo os crimes dele e a organização que existia para que esses crimes nunca fossem descobertos e o produtor condenado, mas também porque o caso Weinstein foi em parte responsável pela criação do Me Too, movimento contra o assédio e a agressão sexual. E, por último, porque um caso como esse naturalmente nos faz questionar sobre quantos outros homens poderosos não fazem a mesma coisa que Weinstein. O filme não parece disposto a perdoar ninguém que esteja envolvido em casos assim – nem mesmo as mulheres, como Lisa Bloom (Anastasia Barzee), advogada de Weinstein e filha da advogada feminista Gloria Allred, que as jornalistas inicialmente acreditam que quer ajudá-las na investigação. Que a realidade, um dia, siga a ficção.
Ela Disse chega aos cinemas no dia 8 de dezembro.