Freud – Essa série vai hipnotizar você!
A nova produção austro-alemã da Netflix, Freud, com direção de Marvin Kren, usa e abusa da figura do pai da psicanálise, reimaginando parte de sua vida com grandes doses de invencionices em prol de um entretenimento escapista, mas que não deixa de acenar para o retratado em símbolos que o marcaram no século 20.
Portanto, o espectador tem que chegar avisado que não se trata de uma produção biográfica de Sigmund Freud e transita muito mais entre as pirações ficcionais de um “O Corvo” (filme de 2012 com John Cusack sobre Edgar Allan Poe), mescladas com a atmosfera sobrenatural da já cult série “Penny Dreadful”. Ao menos uma sequência macabra evoca “O Último Portal”. O ponto alto aqui, no entanto, é a fotografia, visualmente impecável, que também nos remete a “Peaky Blinders”.
Nesse oceano de referências, Kren ainda preservou fatos históricos do psicanalista, como seu vício em cocaína, as apresentações na Universidade de Viena, o casamento com Martha Bernays, o teatro em chamas que virou moradia e, claro, o trabalho na clínica psiquiátrica. Além disso, as presenças reais de Lenore, Josef Breuer e Theodor Meynert. Em dado momento, Sigmund sonha que está matando o pai e transando com a mãe, o que, mesmo com o humor involuntário, ainda gera elementos identificáveis para os leitores e estudiosos do retratado. No mais, a série sustenta uma estranha obsessão por pênis e babas gosmentas.
Freud
Robert Finster faz o protagonista quase secundário na figura do sempre atônito e preocupado Freud. Ele é um picareta de bom coração, com mais alugueis atrasados que o Seu Madruga poderia contar. Mas é Ella Rumpf (que já havia mostrado a que veio no marcante “Raw”) quem rouba a cena e o programa para si, praticamente. Com feições quase idênticas a de uma versão jovem de Eva Green (tendo inclusive semelhança em uma cena inicial de comunicação com espíritos, quanto nos momentos de “possessão”), o arco de sua fictícia personagem Fleur Salomé é o que traz os elementos sobrenaturais para a trama e a conduzem do começo ao fim.
Para tanto, o roteiro faz uso de pequenas histórias de crime cometidas por ex-soldados, que guardando traumas da guerra, tem seu lado animalesco despertado por uma palavra-chave sugestiva, o que inclui no enredo também um golpe ao império Austro-Húngaro, por um casal de hipnólogos (com a belíssima Anja Kling entre eles) em busca de vingança. Por fim, Georg Friedrich faz um capitão da polícia que entre vários adversários que vai formando pelo caminho, tem em si seu pior inimigo. A série dá a ela um arco próprio e sustenta 8 episódios também com suas subtramas.
Pseudociência?
Mas se engana quem acha que Freud é uma produção que mistura ciência com misticismo. A ideia aqui é justamente derrubar os mitos com a psicanálise. O próprio Sigmund não era tão afeito da hipnose (a verdadeira protagonista da história!), a largando no início da carreira; mas o método serve à trama em toda sua essência, cabendo a todos os personagens e com os fins justificando os meios. Nisso, a série se alinha com a definição de “Táltos” na mitologia húngara: trata-se de uma pessoa com habilidades sobrenaturais, incluindo poderes de cura e mediunidade.
Os Táltos ainda poderiam se comunicar com toda a nação húngara caso houvesse uma grande ameaça. Então, em dado episódio, o pai da psicanálise explica a condição dualista disso que parece uma possessão, mas na verdade é uma segunda personalidade, gerada no caos e tragédia, que assume quando a pessoa entra em risco. Mesmo assim, é claro, as visões de Fléur (como a do espírito queimado) e algumas previsões futuristas que realiza (e acerta) ficam sem explicação, deixando brechas para o público preencher. Afinal, a paranormalidade é uma pseudociência.
Com muita aventura, terror e suspense, Freud brinca com uma figura histórica, no intuito de metaforizar seus significados em forma de entretenimento. Estudiosos podem torcer o nariz, mas ainda têm chances de se divertir com uma outra visão sobre o barbudo. Enquanto isso, leigos podem vir a querer saber mais sobre o psicanalista e seu lado real nisso tudo.