Hairspray Live! – Uma ode às diferenças
Hairspray Live! é inspirado no musical Hairspray, que por sua vez é inspirado no filme Hairspray – E Éramos Todos Jovens, de 1988. Tracy Turnblad (Maddie Baillio) é uma adolescente que sonha em dançar no Corny Collins Show, mas que está completamente fora dos padrões. Mesmo assim Tracy participa do concurso e consegue entrar no show, onde conhece Amber (Dove Cameron), que a detesta e Link (Garrett Clayton), por quem ela é apaixonada.
Quando conhece Seaweed (Ephraim Sykes), um aluno negro da sua escola que informa que o show é segregacionista e que os negros só tem direito a dançar no programa uma vez por semana, Tracy percebe que a escolha para o programa deveria ser baseada na habilidade de dança de cada um e não na cor da pele e resolve protestar quanto a isso.
Hairspray Live e as diferenças
A grande intenção por trás de Hairspray é celebrar as diferenças. A protagonista é uma adolescente gorda que está completamente fora do padrão de beleza atual. Ela ouve insultos constantemente, mas não parece se abalar com nenhum deles.
Quando vai fazer o teste para dançar no Corny Collins Shows, ela é ofendida pelas dançarinas e pela instrutora de dança, Velma (Kristin Chenoweth). No entanto, ela sabe que dança bem e, embora fique chateada, ela não se abala, ela continua no seu percurso para conseguir entrar no show.
Tem que se destacar que Hairspray traz uma protagonista completamente fora dos padrões já na sua primeira versão, em 1988, quando isso soava quase impensável, e não usa suas características físicas para fazer piada dela própria. Hoje em dia, é um pouco mais comum que existam produtos audiovisuais com protagonistas que não são magras, mas Hairspray ainda se mostra uma exceção.
Leia aqui a resenha sobre o outro filme
A mãe de Tracy, Edna (Harvey Fierstein) também é uma mulher gorda, que diferentemente da filha, se esconde em casa, mas que também tem seus momentos de redenção na trama. Já a melhor amiga de Tracy, Penny (Ariana Grande) pode se encaixar em todos os padrões estéticos impostos pela sociedade, mas se comporta de maneira um pouco estranha. Hairspray Live! então entra em outras questões como a repressão contra os negros e o racismo.
A segregação
Hairspray Live! é por si só um musical alegre e divertido, mas faz suas próprias críticas sociais. A trama se passa em 1962, em Baltimore, onde tudo que uma adolescente branca quer é dançar em um programa de tv popular entre os jovens. Quando isso acontece, ela sofre rejeição de boa parte das pessoas que já dançam no programa porque ela não é magra, mas ela também percebe que existe uma outra parcela enorme da população que sofre ainda mais rejeição do que ela: os negros.
Seaweed, sua mãe, Motormouth Stubbs (Jennifer Hudson) e sua irmã Inez (Shahadi Wright Joseph) também fazem parte do programa, mas só podem dançar uma vez por semana no chamado “dia do negro” (em inglês “nigger day”, lembrando que “nigger” é uma palavra extremamente ofensiva e racista). Para Tracy, a escolha do elenco do Corny Collins Shows deveria ser baseada na habilidade de cada pessoa e não na cor da pele e é por isso que ela resolve protestar contra o racismo no programa.
A interação entre os personagens brancos e os personagens negros de Hairspray Live! é um espelho do que acontecia na época da segregação americana, quando os negros e os brancos não podiam se sentar no mesmo lugar no ônibus, frequentar os mesmos restaurantes e nem usar os mesmos banheiros. Claro que o protesto dentro do filme parece até bobo perto de situações que vemos na vida real, mas é sim uma luta por justiça e por representação dentro da televisão.
Hairspray Live!
A trama de Hairspray surgiu no filme de 1988 que não é um musical, embora tenha muitas características do gênero e tenha algumas músicas relevantes no meio da sua trilha sonora. Hairspray só chegou à Broadway em 2002 e ganhou oito Tonys em sua primeira montagem. A peça ficou em cartaz até 2009 e ganhou montagens em diversos lugares, inclusive aqui no Brasil, onde foi estrelada por Edson Celulari, Danielle Winits, Arlete Salles, Jonatas Faro, Simone Gutierrez, Tiago Abravanel e Karin Hils.
Em 2007, Hairspray ganhou uma versão para o cinema, chamada de “Hairspray – Em Busca da Fama” ,que é bem fiel ao musical e tem no elenco John Travolta, Zac Efron, Nikki Blonsky, Amanda Bynes, James Marsden, Brittany Snow, Michelle Pfeiffer e Christopher Walken.
Musical ao vivo
Hairspray Live! vem atrelado ao sucesso de Grease Live!, e tem como principal ideia transmitir um musical ao vivo direto para a televisão americana. A ideia por si só não é ruim, talvez a transmissão atraia mais gente para o musical ou pelo menos, para o filme, mas a produção parece ficar bem ali no meio termo do cinema e do teatro, uma vez que usa elementos do cinema, como a filmagem e elementos do teatro, como a atuação e o canto ao vivo.
Mas se no cinema tudo é ensaiado à exaustão e filmado quantas vezes for necessário e no teatro, as coisas no palco parecem calmas e bem ensaiadas (mesmo que nos bastidores não estejam), em transmissões como Hairspray Live! tudo parece um pouco corrido.
Aspectos técnicos
De uma maneira geral, Hairspray Live! se sai bem, mesmo que tudo pareça um pouco corrido demais. Fica claro que existe uma boa produção, e uma parte técnica afinada, o que se faz extremamente necessário quando se vai transmitir um musical de duas horas para a televisão.
O filme tem, no entanto, menos números de dança que o filme de 2007, e algumas músicas a menos. Hairspray Live! mantém a aura do seu original e levanta as mesmas bandeiras. Traz ainda algumas inovações, como o fato dos personagens negros mostrarem um claro desgosto quando se usa a expressão “nigger day”, mesmo que o filme se passe nos anos 1960. Nas outras versões, os personagens, embora insatisfeitos com a sua pouca representatividade na televisão, parecem não se incomodar com a denominação que recebem.
O elenco
Hairspray Live! também parece um pouco mal escalado, o que naturalmente gera comparações com o filme de 2007, que é um filme bem escalado. Ariana Grande, embora cante muito bem e tenha uma voz linda e muito potente, o que automaticamente lhe garante algumas vantagens nos números musicais, está péssima como Penny. Sua atuação é caricata e exagerada e quando ela canta, repete os mesmos trejeitos que podem ser vistos em qualquer um dos seus videoclipes.
Tudo bem que Penny é uma personagem um tanto quanto estranha, cheia de tiques, mas Grande torna a personagem quase palhaça. A atuação de Amanda Bynes, que interpreta Penny no longa, é mais condizente com a personagem e mesmo em Hairspray Live!, Andrea Martin que interpreta a mãe de Penny, que também é uma personagem exagerada, se sai muito melhor.
Outra questão é que Grande parece muito mais nova do que de fato é, o que é uma vantagem quando se trata de interpretar personagens adolescentes, que é o que acontece aqui, mas se em Hairspray Live! Grande, com 22 anos, interpreta uma adolescente de 17, com o figurino do filme, ela parece de fato uma criança. Nas cenas em que ela é carregada no colo por seu par romântico – o que acontece com uma frequência um tanto quanto exagerada – parece que estamos assistindo um adolescente carregando sua irmãzinha mais nova.
O restante do elenco
Jennifer Hudson é uma ótima atriz e tem uma grande carreira em musicais, mas é magra demais para o papel de Motormouth, que é uma mulher gorda e que tem um papel onde isso é extremamente relevante.
O resto do elenco é muito bom e se sai bem nos seus papeis. Maddie Baillio parece a escolha perfeita para o papel de Tracy; Kristin Chenoweth sempre se sai muito bem e é uma ótima cantora; e Dove Cameron consegue se destacar. Além disso, a produção continua fiel a tradição de escalar um homem para interpretar a personagem Edna Turnblad. Isso começou com a drag queen Divine, no filme original.
Também é importante ressaltar que o filme tem ótimos figurinos, que mesmo sendo ligeiramente caricatos, nos transportam para os anos 1960. Ele ainda passa ótimas mensagens, como a de respeito à diferença, combate à gordofobia e ao racismo.
As músicas
As músicas que fazem parte da trilha sonora de Hairspray Live! são as que foram compostas para o musical da Broadway. Entre elas estão The Nicest Kids in Town, I Can Hear the Bells, The Legend of Miss Baltimore Crabs, Welcome to the 60’s e Without Love. Aqui não temos todas as músicas que aparecem no filme de 2007, mas algumas outras são acrescentadas, como Mama, I’m a Big Girl Now, It Takes Two, Velma’s Revenge e Cooties.
A montagem é um musical dos mais clássicos, ou seja, as pessoas cantam e dançam na rua, e as músicas empurram a trama para a frente. Em alguns momentos, as cenas musicais são apresentadas no palco do Corny Collins Show ou fazem parte dos sonhos de Tracy.
Hairspray Live! termina com Hudson e Grande cantando Come So Far (Got So Far to Go), fora de seus personagens, quase como em um show, o que também funciona muito bem.
Hairspray Live! tem uma boa iniciativa e uma boa produção. A comparação com Hairspray – Em Busca da Fama, a versão mais conhecida de Hairspray, é inevitável e talvez a versão live não seja melhor, mas ela ainda se sai muito bem e traz à tona as mesmas questões que o original, que são importantes e devem ser discutidas ainda hoje.