Maria e João: O Conto das Bruxas
Um conto de fadas da perspectiva feminina
Maria e João: O Conto das Bruxas é inspirado no conto de fadas dos Irmãos Grimm.
Maria (Sophia Lillis) e João (Sammy Leakey) são expulsos de casa pela mãe, que não tem mais dinheiro para alimentar os dois. Eles então vagam pela floresta até que encontram a casa de uma senhora solitária (Alice Krige), que lhes dá comida, abrigo e trabalho. Além disso, ela parece muito disposta a ensinar a Maria alguns truques.
É então, que Maria e João começam a perceber que as intenções da senhora podem não ser tão boas assim.
Maria e João – O Conto das Bruxas – A origem
É quase impossível determinar a origem completa de João e Maria (ou de qualquer outro conto de fada), mas sabe-se que a história foi publicada pela primeira vez pelos Irmãos Grimm em 1812, com o nome de Hansel and Gretel, por isso se atribui a sua criação a eles.
Mas a verdade é que os contos de fadas de uma maneira geral surgiram mais ou menos como lendas urbanas. As pessoas as contavam às crianças para evitar que coisas terríveis acontecessem a elas, e, portanto, não tem uma autoria oficial. Esses contos de fadas eram bem pesados e beiravam o terror, e acabaram sendo amenizados com o tempo para que fosse possível continuar contando para crianças modernas que não estavam expostas aos mesmos perigos que as crianças para quem os contos foram pensados originalmente.
Quando a Disney passou a adaptar diversos deles, eles foram transformados completamente em histórias infantis. É por isso que muita gente conhece a versão de João e Maria que é mais infantil, mas que mesmo assim é assustadora. A madrasta convence seu marido a deixar seus filhos do casamento anterior na floresta, com a intenção de que eles se percam, sejam devorados ou simplesmente morram de fome. Afinal, a família não tem dinheiro para alimentar quatro bocas. As crianças, no entanto, conseguem encontrar uma casa feita de doces, onde uma senhora gentil vive. A senhora aceita que as crianças vivam com elas e passa a alimentá-las de maneira exagerada para que eles engordem e ela possa devorá-los.
A história original
No conto original, é a mãe mesmo que convence o pai a deixar as crianças na floresta, porque não pode alimentá-los. Eles conseguem chegar nessa casa feita de doce, onde se refestelam e passam a ser engordados para que a bruxa possa comê-los em algum momento.
João e Maria provavelmente é uma história criada na idade média, no período da grande fome, quando os pais de fato abandonavam seus filhos na floresta ou pior ainda, canibalizavam as crianças. É por isso que a comida e a fome são questões de extrema importância no conto. A mãe abandona as crianças na floresta porque não tem comida para lhes dar.
As crianças atacam a casa da bruxa, que é feita de doces. Mais tarde, a bruxa alimenta as crianças, até que possa se alimentar delas. A história inteira retrata personagens famintos, dispostos a comer qualquer coisa, sejam casas, sejam crianças e a fazerem qualquer coisa por comida. Mas João e Maria também é uma história de crescimento, quase um rito de passagem, afinal, retrata duas crianças que saem dos domínios de seus pais pela primeira vez e que precisam, como é frequente em contos de fadas, enfrentar o mundo e seus perigos sozinhos. O filme de Oz Perkins segue essa linha de pensamento.
O filme
Maria e João: O Conto das Bruxas é um filme que está disposto a trabalhar os aspectos mais assustadores do conto, embora faça algumas mudanças. O longa retrata uma família que perdeu o pai e que é mantida só pela mãe, que obviamente não consegue alimentar os filhos.
Maria até tenta procurar um emprego, mas não se dá bem, e o que resta para os dois irmãos é ir embora de casa. O longa não explora a história das migalhas de pães, que está presente no conto original, mas mostra algumas situações assustadoras no caminho entre a casa deles e a casa da senhora, que não é feita de doces, mas que tem sempre muita comida disponível.
Diferentemente dos contos de fadas, que embora tenham muitos aspectos sinistros, também tem fadas madrinhas e caçadores valentes, Maria e João: O Conto da Bruxas é um filme onde tudo é sinistro, e onde todas as pessoas são potencialmente más. Até a casa da bruxa, que supostamente é sedutora, é assustadora e afasta as duas crianças no início.
Maria
Uma coisa que faz do filme diferente é o protagonismo que ele dá a Maria. Existem milhares de versões de João e Maria e em grande parte delas, João é o irmão mais velho, e, portanto, o que toma boa parte das decisões importantes. O filme de Perkins faz o contrário. Maria é a irmã mais velha, ela tem em torno de 15 anos, enquanto João é um garotinho de mais ou menos 10 anos. O que acontece é que Maria acaba se tornando responsável pelo irmão, mesmo sem de fato, ser.
Antes mesmo de ser expulsa de casa, Maria já sabe, como boa parte das mulheres, que o mundo é um lugar hostil e perigoso e cheio de pessoas dispostas a tirar vantagens. Quando a menina procura um emprego como cozinheira e arrumadeira na casa de um homem rico e mais velho, ela percebe que ele não está interessado em seus serviços domésticos, mas sim no que ela pode oferecer sexualmente a ele.
É por isso que quando os irmãos chegam à casa da bruxa, a menina custa a acreditar que aquela senhora está disposta a lhes dar comida e abrigo, sem receber nada em troca. E embora João esteja certo que encontrou o melhor lugar para ficar, Maria ainda tem suas dúvidas. Quando o filme toma o ponto de vista de Maria, que afinal de contas, é responsável por salvar seu irmão da bruxa no conto original, ele acaba se tornando uma obra especialmente feminina.
Um filme feminino
Os contos de fadas são por si só, histórias femininas, justamente porque dão bastante ênfase às personagens femininas, sejam mocinhas, sejam vilãs. Se lembrarmos de todos os contos de fadas que conhecemos, conseguimos pensar em diversos que são protagonizados por mulheres. Algumas delas são princesas (Branca de Neve, Cinderela, A Bela Adormecida, A Princesa e o Sapo, A Princesa e a Ervilha, entre outros); e algumas delas são meninas comuns (Chapeuzinho Vermelho, A Pequena Vendedora de Fósforos, A Bela e a Fera, entre outros).
Quando as mulheres não são protagonistas, elas são importantes por outros motivos e muitas vezes controlam as situações que são apresentadas na história, seja com rainhas, madrastas, bruxas, fadas madrinhas ou mães. Maria e João é um filme extremamente feminino porque é focado nas duas figuras femininas da trama: Maria e a bruxa. O longa começa contando a história de uma garotinha que tinha poderes e foi banida para a floresta e continua com a trama de Maria.
As duas histórias se ligam ao longo do filme, uma vez que a história da garotinha do capuz rosa, que é apresentada no começo, também é o conto de fada favorito de Maria e que a menina e Maria tem algumas semelhanças. O filme acompanha o amadurecimento de Maria. Ela começa como uma garota indefesa que depende das vontades dos outros, mas segue como uma jovem mulher, que é capaz de decidir por si mesma. O filme é sobre o amadurecimento de uma mulher.
Maria e João, não João e Maria
Não é à toa que o nome de Maria vem na frente do de João nessa versão e muito menos que ele use do maior símbolo de liberdade feminina nas histórias, a bruxa. O filme tem diversos símbolos femininos, como a bruxa em si, a rainha que aparece no jogo de xadrez dos irmãos, a garotinha do capuz rosa e o ciclo menstrual de Maria, que não é só uma representação de feminilidade, mas também do crescimento da mulher.
Quando o longa mergulha nesse universo feminino, também acaba falando sobre feminismo, mesmo que essa não seja a intenção. Afinal, querendo ou não, o filme fala sobre o lugar da mulher naquela época; a maneira como Maria é relegada ou a esposa (ou amante) de alguém ou a dona de casa, enquanto João sonha em ser lenhador; sobre assédio e por fim, sobre o poder feminino que existe dentro dessas personagens.
Aspectos técnicos
Maria e João: O Conto das Bruxas é um filme de terror, e isso por si só, já é interessante, uma vez que existem poucas versões de terror dos contos de fadas, embora boa parte deles tenham o material perfeito para isso. Mas também é importante lembrar que ele não é um filme de terror comum. Se você for ao cinema esperando encontrar jump scares, sustos óbvios e tramas explicadinhas, provavelmente vai sair decepcionado.
O filme tem um ritmo mais lento, mas nem por isso menos interessante. Seu clima bem assustador e sinistro, quase opressivo, deixa a plateia com a certeza de que algo de ruim vai acontecer a qualquer minuto. O que é interessante é que embora grande parte do público saiba o que acontece no final, o filme ainda é surpreendente, porque entrega uma nova interpretação.
Em muitos aspectos, como a localização, a época e os temas que envolvem a mulher, e a relação entre a bruxa, o poder feminino e a liberdade feminina, o filme lembra muito o terror A Bruxa. O fato de ser inspirado em um conto de fada, que não tem uma versão “oficial”, faz com que as mudanças para o filme sejam relevantes e aceitáveis. Isso dificilmente vai incomodar alguém, já que ninguém pode apontar o que é fiel e o que não é.
Tem mais!
A fotografia e as cores do filme seguem o seu aspecto sinistro, então tudo é escuro. A floresta não tem flores, mas árvores altas que parecem estar em pleno outono e quase nenhum verde. O mesmo acontece nos figurinos. Maria só usa vestidos de cores básicas, como branco, cinza e preto, a senhora então, está sempre de preto. A casa da bruxa, que na história original é suculenta, atraente e colorida em função dos doces, aqui é escura, fechada, opressiva, em um formato triangular estranho e pouco receptiva, como o próprio diretor define “um pesadelo”.
Embora o filme não tenha sustos ou cenas de terror clássicas e clichês, ele tem muitas cenas assustadoras, especialmente em função do que ele implica. O som também é um trabalho cuidadoso, já que muitas vezes ouvimos a barriga das crianças roncando seja de fome, seja de satisfação, depois de comer o banquete na casa da senhora. A câmera, em alguns momentos, balança conforme os personagens andam, especialmente em cenas que os personagens estão assustados, o que coloca o espectador na situação junto com eles.
O filme também tem boas atuações, seja da garotinha que interpreta a menina do capuz rosa, seja de Sophia Lillis, seja de Sammy Leakey, mas Alice Krige é de longe a melhor pessoa em cena. Sua interpretação é calorosa e sinistra e em segundos ela passa de uma senhora simpática a uma criatura assustadora.
Referências
O longa tem também um easter egg para quem gosta de contos de fadas e está ligado nas referências. Quando Maria e João encontram um caçador (Charles Babalola), que é um personagem que aparece em outros contos de fadas, como Branca de Neve e Chapeuzinho Vermelho, ele fala para as crianças não darem conversas para os lobos na floresta, em uma referência mais do que óbvia a Chapeuzinho Vermelho.
É verdade que o filme se perde um pouco no meio e talvez apresente uma trama intrincada demais que não se fazia necessária, mas isso não tira o mérito de Maria e João: O Conto das Bruxas.
Maria e João: O Conto das Bruxas é uma releitura do conto de fadas clássico, que consegue falar sobre feminilidade, amadurecimento e como tudo isso é bem mais complicado quando você é uma jovem mulher sozinha no mundo. O filme entra em cartaz no dia 20 de fevereiro.