O Poço – O tal do isolamento vertical (contém spoilers)
Caminhando no terreno dos spoilers a partir daqui, temos a obra máxima do estreante Galder Gaztelu-Urrutia. Com este filme O Poço, no ano passado, ele já abocanhou o Prêmio Goya de Melhor Diretor Revelação e agora se tornou um dos principais filmes da Netflix.
Diferentemente de seu protagonista, o diretor espanhol não intenciona passar qualquer mensagem ou mudar o mundo (nas palavras do próprio, para o iHorror). Fazendo uso de um suspense suntuoso, uma ficção científica bem elaborada e de um terror caprichado, ele quer fazer seu público pensar. Sem explicações (e não precisa), conhecemos Goreng acordando n´O Poço, um tipo de edifício colossal com centenas de níveis, duas pessoas por andar.
Ele se alistou voluntariamente para passar um período nesse ambiente, onde as pessoas são servidas com um extraordinário banquete a partir do andar 0. Entretanto, conforme a plataforma vai descendo, não sobra mais nada para quem está nos níveis inferiores, nem mesmo a dignidade. Dessa maneira, Gaztelu-Urrutia explicita a crítica social de que quem está acima vive melhor de quem está abaixo e não precisa ser muito inteligente para pegar essa.
O Poço
Mas o diretor não é raso na sua proposta. Alimentando-se de passagens bíblicas, ele recheia o longa de outros simbolismos, como a figura do protagonista altruísta ganhando ares de messias (fisicamente falando); de animais e crianças como sacrifícios nas mãos dos mais fortes; das alegorias com céu e inferno e, claro, com o purgatório que esse cenário claramente representa.
Ivan Massagué está ótimo como Goreng, trazendo uma mistura de indignação, curiosidade e bom senso, que em certo momento é corrompido com o cinismo, a malícia e a gula. Afinal, ele ainda é humano e todos estamos propensos à queda, mesmo os mais justos. Zorion Eguileor como Trimagasi e Antonia San Juan como Imoguiri são dois lados da mesma moeda moral que conduz o protagonista, soltando frases poderosas como “quem tem mais, quer sempre mais” ou “nenhuma mudança é espontânea”.
Emilio Buale como Baharat e Alexandra Masangkay como Miharu entram como as minorias étnicas no elenco para fortalecer não só mais esse discurso, como também com funções poderosas no enredo; de um lado, um homem forte e de fé, que junto de Goreng vai protagonizar uma impressionante sequência de ação em suspensão, enquanto que a mulher vai abrir dúvidas direto para um pingo de esperança.
Vamos lá!
E apesar de parecer um “filme difícil”, O Poço é mais simples do que se imagina. Em produções assim, não existe um “final correto” e absoluto, afinal todas as interpretações são válidas. O diretor se escolou em obras como “Cubo” e “Inception”, histórias essas que sobrevivem ao tempo e as gerações ganhando novas teorias a cada sessão, com todas elas sendo coerentes em algum sentido.
Portanto, o espectador pode subentender que, no final, os dois homens morreram e a menina não existe. O que chega à superfície é apenas a sobremesa protegida que ninguém comeu, ou seja, a “mensagem” foi entregue. Em outra interpretação, mais leviana e improvável, O Poço é uma metáfora para o purgatório, entre o céu e o inferno; quanto mais descemos, mais vemos Pecados Capitais como a gula, a luxúria, a avareza, entre outros; quando Goreng encontra a pureza (representada na forma da criança), ele consegue ascender ao céu.
Diversas interpretações
Os últimos momentos do protagonista podem ter diferentes interpretações. Uma delas é de que o personagem morreu no processo de tentar salvá-la e a última cena marca o encontro dele com o amigo no outro mundo, deixando para trás tudo o que aconteceu. Outra possibilidade seria a de que, mesmo salvando a menina, Goreng viveu muito tempo dentro da prisão e foi corrompido pelo sistema, o que impossibilitaria o seu retorno junto dela, que representa a esperança.
Uma terceira opção, essa um pouco mais realista, é a de que ele estaria delirando após enfrentar a morte em sua descida pelos níveis mais baixos. Seu encontro com Trimagasi seria apenas outro fruto de sua imaginação e, após salvar a criança, seu destino seria ficar no último nível até que o seu mês derradeiro de confinamento terminasse. A escolha é sua e essa é a graça.
Não importa qual seja sua visão dessa obra marcante, ela surtiu o efeito desejado e nos levou a pensar, em um raciocínio atemporal onde buscamos nossa humanidade, agora, em tempos de coronavírus, mais do que nunca. Goreng entende que a prisão representa o que há de mais egoísta dentro do ser humano. Foi necessário passar por todos os níveis para se criar compaixão para com os mais necessitados. Ao salvar a vida da garota, ele cria uma ponta de esperança para que essa mudança ocorra. De qualquer forma, funcionou, a mensagem foi entregue. É óbvio.