Opinião: Porque censurar Community é um erro
Remover o episódio "Advanced Dungeons and Dragons" não foi a melhor atitude...
Eu não “apenas” gosto de Community. Eu sou muito fã de Community e acho a melhor série de comédia de todos os tempos. Não é a mais engraçada (oi, The Office!), mas é a melhor.
De uma premissa ridiculamente simples, permitiu-se extrapolar em níveis que ninguém sabia que era possível para uma sitcom. Ela foi ficando mais e mais absurda conforme as temporadas foram passando e ninguém os interrompeu.
Os episódios passaram por todos os gêneros possíveis, de filmes de zumbi a desenhos animados, passando por filmes de máfia, western, espionagem, videogames 8 bit, musicais, terror, bonecos de massinha, Star Wars, bonecos fantoche, filmes de ação (um dos episódios é até dirigido pelo Justin Lin), histórias de crime à la David Fincher, realidades alternativas… Nenhuma outra série na história conseguiria fazer os personagens assumirem que “o chão é lava” e criar um episódio inteiro em cima dessa estultice.
Community
Não à toa que o núcleo criativo de Community se deu muito bem depois que ela acabou: o criador Dan Harmon começou um desenho animado que fez tanto sucesso que o Adult Swim já encomendou 70 novos episódios (é de Rick and Morty que estamos falando). Os diretores e produtores Anthony e Joe Russo chamaram a atenção da Marvel por conta de episódios da série que retratavam gigantescas batalhas de paintball (tem sempre um em cada temporada) e foram contratados pela empresa – se deram tão bem na Marvel que foram os responsáveis por “Guerra Infinita” e “Ultimato”.
Community tem voltado às paradas agora que a série está disponível nas plataformas de streaming. Tanto Netflix quanto Amazon Prime incluíram-na em seus catálogos, porém a experiência completa só vai mesmo pra quem assistir a série pela Prime. Isso porque a Netflix, em uma jogada burra e impulsiva, censurou um dos melhores e mais importantes episódios.
Blackface através dos tempos
O filme The Birth of a Nation estreou em 1915. Ele foi revolucionário em diversos aspectos: tinha tomadas de câmera nunca antes vistas, perseguições espetaculares (para a época), trilha sonora melodramática. Também é um dos filmes mais racistas e desprezíveis já produzidos. A Ku Klux Klan aparece para salvar o dia e são tidos como heróis.
Até os personagens negros do filme são interpretados por brancos com rostos pintados, uma vez que atores negros não eram permitidos. Blackface é uma prática nefasta por conta disso: ela remete à uma época da cultura americana onde o racismo era tão escancarado que o costume se tornou uma ofensa.
O Blackface não existe mais com o intuito com que foi criado, apesar de ter sido usado diversas vezes nos últimos tempos com o objetivo de criar comédia. Então, com a necessária e bem-vinda discussão sobre o racismo que tem crescido no mundo, diversas empresas de entretenimento e até mesmo os criadores de conteúdo revisaram seus produtos.
Censurado
Isso culminou em episódios censurados de 30 Rock, Scrubs ou The Office. Acredito, pessoalmente, que as censuras das séries foram válidas (principalmente no caso de The Office, onde tudo o que foi removido foi uma cena não relevante), apesar de eu preferir a adição de um alerta sobre o conteúdo antes dos episódios, coisa que até mesmo a Disney poderia aplicar em suas obras. Não vou entrar nos méritos de outros filmes como Tropic Thunder, porque teria que me explicar longamente sobre a noção de fair use, porém adoraria saber se esta cena de “Gigolô por Acidente” é válida (deixem suas opiniões nos comentários).
O fato de eu aceitar tão bem essas outras interferências que me fez pensar porque eu repudiei tanto quando a Netflix removeu um episódio de Community de seu catálogo.
Advanced Dungeons and Dragons
Quem assiste pela Netflix não vai nem perceber que tem algo errado. A empresa removeu o décimo quarto episódio da segunda temporada e agora finge que ele nunca existiu, indo do 13 para o 15, adotando a numeração errada (em Community até a numeração dos episódios é motivo de piadas, então a série como um todo perde com isso).
(percebam que eu gosto tanto de Community que já assisti a série inteira na Netflix e na Prime)
No episódio, Señor Ben Chang (Ken Jeong) está jogando o RPG Dungeons and Dragons e, para interpretar um Elfo negro – um drow, pinta o rosto de preto.
Não é um blackface gratuito. Ele ajuda a construir o péssimo caráter do personagem, sua falta de bom-senso, a evidenciar o desespero dele em fazer parte do grupo e dá mais motivos para o grupo em repudiá-lo. Na hora em que ele é mostrado, inclusive, há uma crítica, quando Shirley (Yvette Nicole Brown) o repreende: “So, we’re just going to ignore that hate crime, huh?”. Ao que Chang deixa claro que é um drow.
Censura equivocada
Aí que entra o primeiro ponto de minha discórdia em relação à remoção do episódio: Señor Chang não pinta o rosto pra imitar uma pessoa negra. Ele interpreta um drow. Um ser mitológico. Contexto é sim importante e faltou bom-senso pra quem viu a cena e a julgou como racista.
Retirar o episódio é também ignorar as outras representações que ele faz. No plot, um nerd jogador de RPG vítima de bullying por seu peso (o Fat Neil) está cogitando o suicídio. O grupo se envolve numa partida de RPG com o intuito de salvá-lo.
É uma excelente história de superação e prevenção de suicídio. É também, dado o tema, um dos episódios mais sombrios e humanos. Além de ser fundamental para o arco de Pierce (Chevy Chase), inclusive sendo referenciado em episódios futuros (quem assiste pela Netflix não vai entender nada).
Pô Netflix…
Também é importante para nerds que cresceram jogando RPG: ele fornece a mais acurada representação da televisão sobre o que é o jogo. Em um painel no ano passado com o elenco da série, tanto o criador Dan Harmon quanto um dos roteiristas elegeram esse como seu episódio favorito. É realmente um episódio adorado pelos fãs que consta frequentemente na lista dos melhores, se não o melhor – e, se tratando de Community, isso não é pouca coisa. …além de ter o que certamente é a melhor cena de sexo de toda a história de Dungeons and Dragons:
Não discordo que há certa responsabilidade sobre o humor e entendo que nos dias atuais usar um blackface como piada é algo, no mínimo, contestável. Porém, contexto é importante e decisões tomadas sem entender completamente a situação abrem precedentes péssimos e só pioram a situação de quem luta pelas causas certas. Porque, se for para censurar Community, tem que remover todo episódio em que o Pierce aparece.
E por tudo isso que, em qualquer conteúdo que exista tanto na Prime quanto na Netflix, eu escolho assistir pela Amazon Prime.
Por isso, pára de me encher o saco, Netflix. Eu não vou voltar enquanto vocês não reverterem essa decisão aí.
É um dos episódios que mais amo desta série maravilhosa, a melhor do gênero e também a mais engraçada, claro, falando da primeira à terceira temporada. Trocaria esse episódio por toda a quarta temporada, que não tem um episódio que preste, que chegue minimamente ao nível do que foi as três primeiras temporadas.