Os Incríveis (2004) só pra matar a saudade
Poucos filmes sobrevivem ao senso de memória afetiva como Os Incríveis, mesmo 13 anos depois, consegue ser ainda melhor quando revisitado, dando uma aula de narrativa e de como um enredo pode seguir adiante sem a batida Jornada do Herói ou uma história de origem. Não à toa, é fácil considerar Os Incríveis como um dos melhores filmes de super-herói, mesmo para os padrões de hoje (sendo elencado facilmente ao lado de obras-primas do gênero nas telonas, como Homem-Aranha 2 e O Cavaleiro das Trevas, por exemplo).
Revendo pela enésima vez e me preparando para a continuação que estreou recentemente, enxerguei coisas novas aqui, da genialidade singular de Brad Bird (que já havia provado seu valor muito antes em O Gigante de Ferro e depois em Ratatouille), um diretor de mão cheia que compreende como poucos o terreno onde pisa (o de super-heróis), realizando ao mesmo tempo uma homenagem e tanto para a Era de Ouro, como apontando um futuro para o formato, que foi inclusive replicado pela Marvel em seu sucesso posterior até os dias de hoje.
Os primeiros 10 minutos do filme são ainda mais brilhantes. Temos a influência da mídia entrevistando alguns super-heróis do momento (a maneira da graphic novel O Cavaleiro das Trevas); a rotina pacata da identidade secreta de Beto Pera que, ao avistar o primeiro crime do dia, transforma seu carro em um super-carro e veste seu uniforme (Hanna-Barbera e tantos outros já haviam brincando com esse recurso antes); a velha piada do gato na árvore; e a partir daqui a fluência narrativa da árvore sendo usada para deter o criminoso, em seguida uma sequência de eventos com outros bandidos, que vão desde o flerte com a Mulher-Elástico, até o homem bomba no prédio, onde minutos antes o Sr. Incrível havia salvado um suicida, culminando no grandioso momento em que ele detém um trem descarrilhado da maneira mais clássica possível (Superman ditou as regras e naquele mesmo 2004, o Homem-Aranha havia repetido o ato). A mesma mídia retorna para massacrar o herói depois, quando um roteiro bem sacado coloca o suicida processando o protagonista, afinal, ele não queria ser salvo e agora, ainda, conta com uma lesão na coluna. Os passageiros do trem, aproveitando da ambição, também o processam fazendo com que todos os heróis sejam obrigados a parar de atuar, aposentando suas máscaras e uniformes, na melhor maneira Watchmen. Sim, Bird fez a lição de casa.
Mais do que uma versão melhorada de O Quarteto Fantástico, o diretor na verdade quis aqui, homenagear todos os grandes super-heróis dos quadrinhos e do cinema (que ainda não contava com o sucesso do Marvel Studios, veja só), usando a dinâmica de uma família para compor seus poderes de maneira mais amarrada. Por isso, o Sr. Incrível é super-forte, como se espera de um pai de família, que carrega alguns pesos nas costas; a Mulher-Elástico, que já assumia o protagonismo desde o primeiro filme ao lado do marido (e que no segundo pega o volante de vez), tendo que se esticar e desdobrar para cuidar dos filhos e da casa ao mesmo tempo, o que justificaria toda sua elasticidade; a adolescente Violeta, sempre com o cabelo jogado na frente do rosto, tímida como a maioria da sua idade, querendo se fazer de invisível diante do crush, a medida que também desenvolve um campo de força, para manter afastado qualquer mal que possa chegar até ela; e do Flecha, um garoto super-ativo como um dia eu mesmo já fui, e que tem na supervelocidade a expressão ideal de sua personalidade. Por isso mesmo, o bebê Zezé se mantém sem poderes até o minuto final do filme, quando se revela com uma infinidade deles, afinal um “bebê pode ser qualquer coisa” (a divertidíssima Edna Moda já indicava isso quando fazia os novos uniformes de todos). Gelado, ainda que apareça pouco, tem forte presença e usa muito melhor seus poderes de gelo do que qualquer versão do Homem de Gelo. Repare em como ele vai atirando as bolas de neve pra criar a ponte gelada, é realmente incrível. Por outro lado, é simplesmente genial o uso do vilão. Síndrome era um fã do Sr. Incrível, que apenas queria ser seu sidekick, mas por um tanto de ego do herói e um tanto de preocupação, foi descartado, o que motivou o moleque a usar sua sociopatia para algo pior, com um maquinário com IA altamente destrutivo (o que hoje chamamos de “raio azul” em filmes de super-herói), um cara milionário e sem poderes, mas que é tão forte quanto, graças a sua avançada tecnologia, a maneira de Tony Stark e o Homem de Ferro.
É importante lembrar que Os Incríveis foi a primeira animação da Pixar inteiramente com humanos, que antes só faziam participações pontuais (até então a produtora havia investido mais em bonecos, monstros, insetos e peixes). E não somente. Os personagens de Bird carregam um traço único, mais inspirado em Bruce Timm (e suas inesquecíveis animações de Batman e Superman), mais angulosos e estilizados, e não o pastiche que é usado incansavelmente até o presente momento em qualquer animação em computação gráfica. Do colant a capa, dos símbolos às cores, tudo foi pensado minuciosamente para referenciar obras do passado e outras contemporâneas, de uma maneira que agradasse fãs de quadrinhos (como o próprio Brad) e também o público geral, conquistando assim todos com o mesmo impacto. A própria cidade metrópole onde se passa parte da história, Metroville, em Nova York, é claramente inspirada na Metrópolis do Superman.
Outra observação que me ocorreu revendo depois de adulto e que vai de encontro com alguns boatos que encontrei na internet em seguida, foi de que, se reparar bem, somente os super-heróis tem poderes nesse mundo. Note que os vilões são todos dependentes de penduricalhos para realizarem suas maldades (o homem com as bombas, o Escavador com seu grande maquinário subterrâneo, a própria tecnologia do Síndrome etc),
e aquela cena com o advogado (claramente um agente governamental) resolvendo as pendengas de Beto e comentando sobre o respeito que a agência tinha pelos supers, mas que eles teriam que se reintegrar aos civis de agora em diante etc, o que nos leva a subentender que em algum momento no passado, o Governo Americano empregou inúmeros super-heróis, e são eles que pagam suas contas, que arcam com seus prejuízos pelas cidades e que resolvem seus problemas burocráticos.
Outra grande e evidente homenagem na animação, são os filmes de agentes secreto, principalmente 007 (do vilão megalomaníaco com uma base secreta em um local remoto; as bugigangas excêntricas, indo até a brilhante e envolvente trilha sonora de Michael Giacchino, que compreendeu todo o espírito da obra e embala o enredo com momentos inesquecíveis). De Missão Impossível, tiramos a mensagem que se autodestrói, inclusive. Repare ainda que Brad Bird já havia adiantado as ideias de tablet e drone 8 e 12 anos antes deles serem criados no mundo real, e que muito antes de qualquer importante debate panfletário sobre o papel da mulher na sociedade, ele já colocava a Mulher-Elástica com um papel igual, senão maior, que o do Sr. Incrível (o pai toma o primeiro ato, mas depois serve como McGuffin pros demais personagens). São várias as cenas grandiosas da obra, desde a explosão do avião, que mostra realmente do que Helena é capaz, até aquelas que mostram as crianças aprendendo a usar seus superpoderes na ilha, de maneira gradual e natural, e a compreensão disso os faz dar uso inventivo para as habilidades no combate ao mal — o que culmina no clímax, da “união faz a força”, tudo é bem justificado, bem amarrado e bem resolvido, neste que é também o melhor filme da Pixar, de longe.
Tem até a pose super-heróica de arrepiar. E novamente repare: Os Incríveis não precisou de Jornada do Herói nem de história de origem para ser incrível. Seu enredo também não precisa, se não quiser.