Sacramento, de Clive Barker e os traumas de infância

Em Sacramento, Will Rabjohns é um famoso fotógrafo da vida selvagem que, num dia em busca de mais uma foto, é atacado por um urso polar e entra em coma. Durante o coma, Will tem sonhos vívidos sobre acontecimentos do seu passado, inclusive um momento na sua infância que envolve um estranho casal e todos os traumas que esse encontro trouxeram para sua vida. Quando ele descobre que o casal está de volta à sua cidade natal, Will percebe que precisa voltar e encarar de frente tudo o que aconteceu.

Sacramento é um livro de terror escrito por Clive Barker, autor conhecido por escrever terror gore, com muito sangue e muitas cenas de sexo. Por outro lado, esse parece ser um livro com momentos mais leves do autor, mas que ainda assim quer abordar temas um pouco mais profundos.

Sacramento

O protagonista Will é um homem apaixonado por vida selvagem, tanto que fez disso sua profissão. Ele é especialmente obcecado pela luta pela sobrevivência, tão comum no reino animal. Ele também não tem medo de se colocar em perigo, tanto que tem um encontro quase fatal com um urso polar.

Mas Will também é um homem quebrado, cheio de traumas e lembranças terríveis, machucado por um término de namoro recente. Mas sem medo nenhum de morrer. Quando ele entra em coma após o ataque do urso polar, ele começa a lembrar de coisas do passado.

Barker então mistura realidade com fantasia, e passado com presente, e vai apresentando a vida de Will ao leitor. Voltamos então, para a sua infância, quando ele tinha acabado de perder um irmão e conhece um casal por quem ele se sente magicamente atraído. Ele acaba imerso na teia desses dois e se envolve em algo que é muito maior do que ele pode compreender.

Traumas

Depois acompanhamos outros períodos traumáticos da vida de Will, como o término de seu namoro e a descoberta de que seu ex-namorado é HIV positivo. Embora Barker dê alguns tons sobrenaturais – como o casal que não envelhece e que de fato é capaz de seduzir pessoas de maneira mágica – e outros nem tanto – como o término e a subsequente doença do ex-namorado – o que, na realidade, o autor quer fazer é falar sobre traumas.

Os acontecimentos na infância de Will podem ser interpretados como qualquer acontecimento que tem a potencialidade para marcar uma pessoa para sempre. Quando o protagonista começa a reviver tudo que viu e percebe que precisa voltar à sua cidade natal e resolver seus problemas, assim como percebe, que precisa apaziguar sua relação com o ex-namorado, que ele sabe ser o amor da sua vida, antes que seja tarde demais, Will também está admitindo que precisa enfrentar seus traumas para finalmente se livrar de toda a bagagem que carrega e essa é uma trama que pode causar identificação em qualquer pessoa.

Clássicos do terror

A trama de Sacramento tem diversos elementos que são clássicos do gênero do terror e que aparecem em tantas obras que às vezes até soam clichês. Will é um homem solitário, que deixou sua cidade e que nunca fala sobre o seu passado. Ele também tem um irmão que morreu quando ele era criança e ele sofreu um trauma na infância, que foi em parte esquecido com a chegada da vida adulta, mas que precisa apenas de uma pequena fagulha para vir à tona.

Pensando rapidamente é possível apontar alguns livros que tem personagens bem parecidos com Will, como por exemplo, A Coisa, que também apresenta uma série de personagens com profundos traumas de infância que foram enterrados e onde um deles, inclusive, perdeu o irmão mais novo; e o mais recente O Demonologista, que também tem um protagonista que se culpa pela morte do irmão.

Não é só mais do mesmo

Esses são clichês que podem incomodar um pouco os fãs do gênero, que no começo podem achar que estão lendo mais do mesmo, mas a trama de Barker é muito criativa e vai se destrinchando de maneira espetacular e logo as semelhanças parecem distantes. O trauma de Will é um trauma sobrenatural, mas que de alguma maneira é muito real.

A narração de Barker e os desafios que ele coloca na frente de seu protagonista tem um tom cruel e o terror é quase cru. Se muitos livros de terror soam, em alguns momentos, juvenis, Barker escreve terror para adultos e usa elementos da vida adulta para isso.

Protagonista gay

Outro ponto extremamente interessante em Sacramento é que ele apresenta um protagonista homossexual, algo raríssimo em livros de terror. Will não só é homossexual, como é assumido e se mostra muito orgulhoso de ser gay, o que é ótimo. A sua sexualidade não é velada, nem punida. Ele fala abertamente sobre isso, tem encontros sexuais com homens e  um ex-namorado sobre quem o leitor lê com frequência.

Aliás, a sexualidade de Will nem é uma questão absurdamente relevante no livro, o que é importante, porque geralmente quando se apresentam personagens LGBTQ+, suas tramas se resumem à descoberta ou às dificuldades de se assumir. Essas nem são questões que vem à tona em Sacramento, não sabemos quando, nem como Will se percebeu gay e nem quando ou como ele se assumiu.

Embora Will mais tarde assuma que pode ter se sentido atraído pela parte masculina do casal ainda quando criança e que ele talvez tenha procurado parceiros parecidos com esse homem ao longo da sua vida, esses são os únicos momentos do livro em que a sexualidade do protagonista se une à trama principal do livro.

Diferente, né?

É interessante acompanhar um personagem assumidamente homossexual, cuja história não gira em torno da sua sexualidade e onde essa questão é tratada apenas como mais uma característica de Will. Ele também está bem longe de todos os estereótipos de personagens gays.

É mais interessante ainda quando sabemos que apesar de Barker também ser assumidamente gay, Will é o primeiro protagonista gay assumido que ele escreve, embora ele tenha dito que Hellraiser: Renascido do Inferno seja sobre o seu processo para sair do armário.

Sacramento é um livro com tons e momentos sobrenaturais, mas que também fala sobre temas muito reais e muito próximos, como traumas, crescimento e amor.