Sandman: Especial 30 Anos – Vol. 2 – Casa de Bonecas
de Neil Gaiman, Mike Drigenberg, Malcolm Jones III e Chris Bachalo, Panini (2019)
Casa de Bonecas é um tratado sensível e encantador sobre a figura da mulher e do feminino no mundo e nas mitologias. No prólogo do volume, um velho ancião narra uma antiga história ritual a um jovem de sua tribo, que, após a circuncisão, percorre o caminho da vida adulta. Assim, tal história dentro da história funciona como uma alegoria sobre a origem do deserto, sobre a diferença entre amor e desejo, e sobre orgulho divino, nunca justo, nunca gentil.
Ao descrever a paixão da rainha africana Nada por Kai´ckul, o misterioso senhor dos sonhos, Gaiman recria antigas histórias míticas que explicavam a realidade dos povos criadores e assim inicia sua narrativa, agora com a crucial participação de Desejo nos rumos do enredo, colocando a jovem Rose Walker como co-protagonista da revista, que reúne então as edições 9 a 16 de Sandman.
Lidando inclusive com outras tramas entrelaçadas à principal, o autor começa a desenvolver o seu tão marcante estilo. Além do dilema de Rose como vórtice, ainda temos a fuga de quatro figuras do Sonhar: Bruto e Glob, monstros dos sonhos; Coríntio, um pesadelo; e Verde do Violinista, responsável pela construção das paisagens do sonhar.
Casa de Bonecas
Do outro lado, um garoto sofre abusos de seus tutores (que certamente serviram de inspiração para J. K. Rowling criar os Dursley), o que o faz se refugiar numa realidade utópica, sagazmente ilustrada como as tiras de Little Nemo. Sempre muito à frente do seu tempo, tematicamente falando, Gaiman apresenta curiosos personagens que vivem numa casa, nos capítulos seguintes (e que devem ter servido de protótipo para as figuras que conheceríamos em Coraline): Hal Carter, transformista profissional; Barbie e Ken, um casal desconfortavelmente perfeito; Chantal e Zelda, duas irmãs, ou amantes ou amigas, que se vestem como viúvas negras; e Gilbert, um simpático e misterioso sósia do escritor G. K. Ghesterton que se mostrará um bom amigo e guardião da protagonista. Sendo assim, todos esses personagens retornarão em volumes futuros de Sandman.
Leia aqui a resenha sobre o volume 1 de Sandman
Falando de paixão e perda, vingança e autoconhecimento com sensibilidade singular, Gaiman, apoiado pelas artes rebuscadas de Mike Drigenberg, Malcolm Jones III e Chris Bachalo (o nome mais marcante do time, inclusive pela sua incursão futura no mainstream dos comics), também dá suas escorregadas de ritmo. Ele quase perde o fio da meada, quando resolve abandonar a narrativa até então sendo conduzida com certa habilidade, para contar a história de um imortal e a amizade que desenvolve com Morfeus de século em século.
É um claro intuito do autor em querer evidenciar os caprichos dos Perpétuos; ou então da perturbadora convenção de assassinos, que por mais que ecoe na trama principal, carece de maior relevância no todo, desgastando um pouco a leitura, mas não o suficiente para danificá-la. O ponto forte, afinal, continua sendo o conflito entre amor e desejo, com desfechos difíceis para a maioria dos personagens.
O feminino
Na configuração das três personagens femininas da trama, Gaiman problematiza diversas das angústias contemporâneas no que concerne a questões de gênero e poder. No conto milenar, Nada é massacrada pela condenação de seu amante, não tendo permissão para escapar de um julgamento divino. Lytta, por sua vez, vive e sonha a fantasia de seu marido, sendo libertada desses sonhos apenas para perceber quão danificada está.
Contrariamente, Rose Walker simboliza a possibilidade de uma nova caracterização feminina, centrada e autoconsciente de suas necessidades. Seu destino é a mudança. Como também é o nosso, ao notarmos que também vivemos, ironicamente ou não, numa irreal/surreal casa de bonecas, segundo parágrafo do blog “Sem Saída”, que complementa muito bem o mesmo raciocínio que tive com esta releitura.
Entretanto, a melhor parte dessa edição fica por conta do prefácio da Kelly Sue DeCoonick e a maneira como ela enxerga esse universo riquíssimo que a inspirou. Vale ler e reler, tem mais nuances nesse texto do que aparenta. Algo assim, tão condizente com Sandman e suas inúmeras interpretações.