Sombras do Terror – dos produtores executivos de SAW
Fazer um filme de terror é adotar uma postura política: discutir o medo do ser humano de forças da natureza por vezes incontroláveis e que não conseguimos entender; e lidar com o obscuro que brota de nossos instintos e medos. Travestidos por toda a violência gráfica (desmembramentos, decapitações, mordidas…), estes elementos propostos formam a essência de filmes deste gênero e são tão brilhantemente explicitados por George A. Romero: ele nos ensina que o horror é engajamento, posicionamento ideológico e veículo de críticas sociais e críticas ao que o ser humano tenta esconder e/ou não consegue lidar.
Por mais sobrenatural e superficial que uma trama possa parecer, ela sempre exalará os nossos medos e a materialização deles. Isto faz do terror o mais coeso dentre todos os gêneros do cinema. Cineastas promissores buscam no horror um exercício, aproveitando a aparente despreocupação com falhas de narrativa para experimentar direções, criatividade e texturas.
Se alguém reclamar, pode-se sempre alegar que o que se deseja é apenas cultuar o sombrio e as idiossincrasias associadas a ele, e nada mais. De fato, grandes mestres e grandes obras do cinema de terror lidaram com naturalidade com inverossimilhanças, e está tudo bem! Vende-se como superficial para se tornar acessível o que, no fundo, é uma discussão sólida. O que é a violência gráfica em um filme gore senão uma exibição rocambolesca da fragilidade do nosso corpo?
Sombras do Terror
A proposta de Sombras do Terror (não confundir com o filme homônimo de 1963 de outros dois gigantes, Roger Corman e Francis Ford Coppola, com Boris Karloff e Jack Nicholson) é interessante: Bane (Frank Whaley), um homem recém-transformado em vampiro, é aprisionado em um galpão por um adolescente órfão e desencaixado, e que tenta lidar com esse monstro que tenta de lá escapar.
Para complicar, seu melhor amigo, sua crush, seu avô, seu cachorro, colegas brutamontes da escola e os braços fortes da lei apimentam essa relação. Não é psicanalítico? Domar o incontrolável da natureza e ao mesmo tempo lidar com os laços sociais e a interação desses laços com essa força inexplicável e assustadora. Um filme de horror parte, normalmente, de uma premissa interessante.
Os buracos no texto, notórios motivos de piada ao longo da história do cinema (ver Pânico, de Wes Craven), aqui, parecem propositais. Explico.
Senta que lá vem história… de terror
A primeira cena nos mostra que veremos um filme de vampiros: cena clássica que remete a coisas como Um Lobisomem Americano em Londres (An American Werewolf in London, 1981, de John Landis). Já a segunda cena, que apresenta a família de Stan (Jay Jay Warren, de A Volta do Juízo Final, 2016), o protagonista, é encenada toscamente, o que passa uma má impressão da qualidade do que veremos daí para a frente: interpretações cafonas e momentos clichês. Entretanto, essa ambientação kitsch se desfaz abruptamente e o filme volta à textura da primeira cena.
É a assinatura do diretor Frank Sabatella (de A Lenda de Mary Hatchet, 2009): ele nos informa que está controlando a encenação, e a partir daí nos transmite a dúvida de que eventuais “liberdades poéticas” na trama poderão ser propositais e se prestarem a um culto aos filmes de horror oitentistas.
Há coisas de fato inverossímeis: a reação de Stan ao desaparecimento de seu avô é uma delas. Ele se recupera estranhamente rápido a isso e logo na sequência vai à escola, interagindo com sua parceira amorosa, Roxy (Sofia Happonen, de Woman of a Certain Age), de uma forma tão tranquila quanto esquisita. Também a decisão de não acionar a polícia após o evento com o avô sob a alegação de que o protagonista está em “liberdade condicional” não se compreende. Mais à frente, a estratégia adotada por três caçadores de vampiros em averiguar três quartos fechados é nonsense. Novamente, tudo isso compramos bem se permitimo-nos a entrega a uma ode aos filmes da velha escola.
Destaques
Há, por outro lado, críticas injustas: uma delas diz respeito à falta de maiores explicações sobre as origens do vampiro que infecta Bane; explicar não é necessário. Uma outra: já estava havendo matança na cidadezinha antes dos eventos narrados? Isso não fica claro; entretanto, é-nos informado que houve uma mortandade de coelhos, e isso basta para que desfrutemos de todo o resto da história, da mesma forma que A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, 1968) apenas delineia os eventos que antecederam o que vemos aqui.
Há poucos momentos splatter, e é um filme tecnicamente simples com atuações simples. A se destacar: a última tomada de um porta-malas de carro que celebra o fim aberto de A Hora do Pesadelo (A Nightmare on Elm Street, 1984); a trilha sonora hard rock, que contempla por exemplo “Dream Warriors”, da banda americana Dokken (presente também em A Hora do Pesadelo 3), fazendo o clima geral lembrar o lendário Heavy Metal do Horror (Trick or Treat,1986); a ótima interação entre os atores que interpretam Stan e Dommer (Kody Costro) em seus momentos juntos, passando uma sensação de amizade verdadeira entre eles.
Também, a construção do empoderamento de Roxy ao fim, pois mesmo ferida ela se ergue para ajudar a definir o final do filme e, após isso, a opção da narrativa em não se atentar ao seu ferimento e à dor decorrente dele mostra uma personagem que pode aguentar essa dor sem paternalismo. As atuais discussões feministas ajudam a criar personagens femininos que se comportam como os masculinos em diversos momentos. Afinal, se Bruce Willis é imparável em Duro de Matar, não é um raspão no ombro que vai tirar nossa caça-vampiros do jogo, não é mesmo?
Por fim, um relato autobiográfico
Filmes como Sombras do Terror remetem à minha já distante adolescência nos anos 1980, em que eu e meus amigos de escola íamos à casa de um de nós, o mais rico dentre todos, para assistir, durante as tardes e em um aparelho de videocassete (aparelhos como esse eram recém-chegados ao Brasil e caríssimos à época) a filmes de terror como O Exorcista ou o maravilhoso Evil Dead (1981, a versão original, a que realmente vale a pena).
Lembro da sensação mágica de ver longas (até então filmes só podiam ser assistidos no cinema ou na TV, muito antes do advento da internet) no horário que quiséssemos, pausando-os quando desejávamos e retrocedendo-os sempre que queríamos. Foram essas seções que ajudaram a plantar as sementes de um futuro cinéfilo neste que vos escreve.
Foram aquelas “sessões da tarde” de terror (e de outros gêneros, incluindo filmes muito apreciados por adolescentes heterossexuais cisgêneros masculinos típicos) que iniciaram o meu caminhar até chegar a este texto. Assim, quem sabe, filmes como este Sombras do Terror, que surpreendentemente ainda têm público e ainda têm profissionais interessados em realizar, não possam criar novos amantes do cinema? De minha parte, o que sobrou do adolescente aqui dentro ainda se diverte com eles. Sombras do Terror não é um marco do cinema, mas se encaixa bem no nicho ao qual se dedica estar.