Black Hammer – Origens Secretas – Ed. Intrínseca
De Jeff Lemire, Dean Ormston e Dave Stewart
Jeff Lemire reverencia os super-heróis da Era de Ouro em um drama de cidade pequena, onde o grande trunfo é o desenvolvimento de seus personagens. Fazendo uma releitura de personagens da DC e da Marvel, o autor compõe uma trama atemporal, de morais distorcidas e figuras insuspeitas, falando sobre solidão, depressão, homossexualidade, com conflitos familiares, mesclando o ambiente doméstico com situações surreais. Isso é Black Hammer – Origens Secretas.
Com grande senso de entretenimento, Lemire sabe dosar homenagem com um roteiro original. Assim, faz bom uso do material de referência para criar algo singular e repleto de personalidade (e bizarrice). O cinismo e o humor negro imperam, mas não abandonam o drama humano que permeia cada um dos heróis aposentados. Cada capítulo do encadernado é dedicado a um deles.
Os personagens
É divertido para o leitor, também, ficar caçando cada releitura. O vilão colossal AntiDeus é uma clara mistura de Galactus com Darkseid; enquanto o falecido Black Hammer do título traz os princípios de Superman, com roupagem de um Thor negro. O líder da equipe isolada sem explicação (ainda) em uma fazenda, da qual jamais poderá sair, é Abraham Slam. Ele é uma contraparte evidente do Capitão América e também o pilar sensato do grupo, que tenta aceitar a condição da melhor maneira possível. Adam Strange foi a inspiração para o intrigante Coronel Weird. Este parece ainda ter saído das melhores HQs de Jim Starlin com suas viagens piscodélicas (com um romantismo existencial à lá Dr. Manhattan também, diga-se de passagem); enquanto que Barbalien é o Ajax, o Caçador de Marte dessa realidade peculiar (também vindo de Marte).
Com menos destaque, temos Talky-Walky, a típica robô como o dos sci-fi dos anos 1950 e 1960. Madame Libélula, que guarda certas características de Ravena, é muito mais do que isso. É um curioso exemplar dos quadrinhos de terror cinquentistas, quebrando a quarta parede para falar com o leitor. E ainda traz à tona sua própria versão do Monstro do Pântano (o Monstro da Lama). Sem contar aquela encarnação incrível da Baba Yaga. Por fim, a personagem mais interessante é a Menina de Ouro, uma versão inversa de Shazam, que ao falar a palavra mágica “Zafram” volta para o corpo de uma menina de 9 anos, no qual ela fica presa, quando seu grupo é confinado nessa realidade rural. Rebelde e frustrada, ela tem que se comportar como uma criança, mesmo sendo quase idosa. O que acaba sendo para o bem da equipe, que simula uma família na pequena cidade.
Black Hammer – Origens Secretas
A edição da Intrínseca está caprichada na medida e não cai nas armadilhas de suas concorrentes, pois não coloca firulas gráficas, mantendo a capa cartonada (sem o desnecessário uso da capa dura), o que favorece a acessibilidade do material por um baixo custo. O encadernado ainda traz um texto do autor com curiosidades incríveis sobre a publicação. Do tempo que ela nasceu, até sua produção, incluindo aí um derrame no meio do caminho. Além disso, há comentários do artista sobre os estudos, esboços originais, fichas de personagens (inclusive de suas versões primárias e de outros que nem entraram na HQ) e capas alternativas.
O roteirista, a princípio, desenharia o título, como revela no parrudo prefácio, mas sobrecarregado de trabalhos, passou o bastão para o ótimo Dean Ormston, que traz o traço ideal para esses personagens e universo, ao mesmo tempo realista e abstrato, que consegue reverenciar as matérias-primas de origem, sem perder a identidade, com as cores sóbrias do mestre Dave Stewart (colorista de tudo o que saiu de Hellboy até hoje, por exemplo) e que funciona nessa história que subverte os tropos do gênero em favor de uma inventividade atípica.
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Afinal, existem diversos materiais do tipo entre os comics americanos que fazem releituras de super-heróis em outro contexto. Assim como Umbrella Academy, O Legado de Júpiter e Astro City (para citar só alguns). O que Lemire buscou então, além de brincar com o formato (inclusive nas cenas de flashback bem sacadas), foi trazer o espírito do passado para uma narrativa contemporânea. Certamente sem abrir mão de sua autoria, preservando os elementos que o consagraram como um dos maiores roteiristas de seu tempo: o drama rural e o purgatório de seus personagens. Black Hammer – Origens Secretas é um dos melhores filhotes de Watchmen, com certeza!