Nós, terror que quebra paradigmas do próprio gênero
Longa injeta humor enquanto fala de segregação e privilégios
Jordan Peele ganhou uma legião de fãs de horror (e também um Oscar de Melhor Roteiro Original) com Corra!, trazendo seu estilo particular para o gênero, algo que ele expande em Nós, mas muda o discurso (do racismo) para falar – de maneira óbvia, mas certeira – sobre segregação e privilégios. Enquanto isso, realiza um desejo antigo, o de narrar uma história sobre doppelgangers.
Quando você aponta um dedo para alguém, aponta quatro para si mesmo e, de fato, não tem nada mais assustador (nem aliens, nem assombrações, nem monstros) do que nossos próprios demônios internos. Com essa premissa e umas lista de filmes tratando do duplo (tais quais como Um Corpo Que Cai, O Homem Duplicado, Gêmeos – Mórbida Semelhança, Persona, A Dupla Vida de Véronique, entre outros), Peele aliou ao gênero de filmes de invasão (que tem em Os Estranhos e Violência Gratuita alguns de seus melhores exemplares) para compor uma narrativa singular, que também traz muito do seu currículo de humor, sem que um invada o espaço do outro, nem quebre a proposta, seja de tensão, seja de riso nervoso.
Nós
Lupita Nyong’o carrega o filme nas costas, com duas interpretações distintas bastante impressionantes. Principalmente com Red e sua voz sufocada, de quem não fala há muito tempo. Winston Duke é responsável pelos momentos cômicos, ao figurar como o pai clichê que quer resolver tudo sozinho, num estereótipo patriarcal que ainda prevalece na sociedade. As crianças Shahadi Wright Joseph e Evan Alex também entregam boas atuações, inclusive nas suas contrapartes bizarras, neste longa que não exige muito didatismo e parece pertencer honestamente como uma obra oriunda de um Além da Imaginação, onde não são as respostas que importam, mas sim como toda a situação se desenvolve.
Mesmo assim, o diretor embutiu simbolismos inteligentes, como a tesoura, que tem duas partes iguais, porém opostas, usadas aqui como armas pelos invasores. Ou da verdadeira identidade de Red, que justamente por já ter sido privilegiada no passado, é a única também capaz de liderar os acorrentados. Por fim, os coelhos e os espelhos são uma clara referência a Alice no País das Maravilhas.
O terror genuíno mesmo se apresenta na virada do primeiro para o segundo ato, quando a família de vermelhos aparece pela primeira vez. A maneira como abordam os Wilson e então, o ataque, seguido de todo aquele sufoco e paranoia. Afinal, em Nós, o verdadeiro inimigo é admitir a própria participação nisso: um medo de que as pequenas violências praticadas diariamente dentro de uma sociedade desigual eventualmente resultarão na destruição da mesma.