Nossas Crianças
Um retrato de que tudo é política
Lykke (Ella Øverbye), de treze anos, cujo o pai (Hans Olav Brenner) faz parte do partido trabalhista e a mãe (Andrea Bræin Hovig) é uma famosa jornalista de esquerda, bate em Jamie, um colega de escola, filho de um político de direita (Thorbjørn Harr), e acaba o matando.
A menina jura que foi acidental, mas poucos acreditam nela. Enquanto seus pais se questionam se de fato conhecem a filha e o pai de Jamie vive seu luto, a escola precisa lidar com a tragédia e entender sua culpa no acontecido.
As crianças
O principal elemento de Nossas Crianças é justamente as crianças, embora elas não sejam exatamente as protagonistas do filme. O telespectador não acompanha a agressão e, por isso, não sabemos quem é Jamie – só vemos uma foto dele no final do filme – e nem o que realmente aconteceu, quase como se aquela situação fizesse parte apenas do mundo das crianças. E o que Lykke descreve realmente faz parecer que tudo não passou de uma brincadeira que saiu muito errado.
No entanto, como o evento causou a morte de Jamie, ele automaticamente entrou no universo dos adultos, mas nenhum deles, assim como a plateia, presenciou o que aconteceu, por isso dependemos unicamente da palavra de Lykke.
Sem nenhuma testemunha além de Lykke, que é, mesmo que sem intenção, a assassina de Jamie, fica muito difícil sequer entender o que aconteceu, que dirá, chegar a uma conclusão de quem realmente tem culpa. Os pais de Lykke se dividem entre ficar do lado da filha e questionar se ela tem algum impulso cruel ou violento que eles nunca notaram. E os professores se veem entre o fogo cruzado dos pais da menina e de Per Erik, o pai de Jamie, que acredita que a dinâmica da escola, mais abrangente e com uma política pró-inclusão, pode ter causado a morte de seu filho.
Os adultos
Mas a morte de Jamie não abala só o mundo de Lykke, de seus pais e do pai de Jamie, mas também da diretora, Liv (Henriette Steenstrup), dos professores da escola e até de suas famílias. É como se a morte do garoto causasse uma ruptura na realidade, algo que faz com que todos comecem a se questionar não só sobre a política da escola, como também sobre suas próprias vidas.
A primeira questão que surge é de quem é a culpa, uma vez que vários professores deveriam estar cuidando da segurança da escola quando o acidente aconteceu. Anders (Jan Gunnar Røise), irmão de Liv e professor de norueguês, na realidade estava mostrando a escola para o novo estagiário (Adam Pålsson). Ele rapidamente começa a se sentir culpado, mas continua dando aulas particulares para Lykke, de quem ele parece gostar.
Para tornar a situação ainda mais complicada, Liv está em um relacionamento secreto com Per Erik e ao mesmo tempo que ela serve de ombro amigo para o pai que está inconsolável, ela também precisa entender o que aconteceu entre Lykke e Jamie sem tomar partidos.
A pressão aumenta sobre a escola quando investigações feitas por pessoas de fora começam e um suposto histórico de bullying envolvendo Lykke vem à tona. Liv se vê presa no seu relacionamento com Per Erik, ao mesmo tempo em que precisa lidar todos os dias com a morte do filho dele e a culpa que Anders sente, somada ao fato dele questionar a responsabilidade de Lykke. Tudo começa a atrapalhar até seu relacionamento.
Política
Uma questão que permeia praticamente tudo em Nossas Crianças é a política e isso se estabelece desde o começo quando sabemos que Lykke é filha de um casal de esquerda e Jamie era filho de um político de direita. As posições políticas dos pais das crianças parecem não ter nenhuma ligação com a tragédia, no entanto, elas mostram como são os pensamentos desses personagens e como eles reagem ao que veem e ao que acontece.
Per Erik, o pai de Jamie, por exemplo, não demora muito para culpar a escola (que tem posições liberais e com uma política pró-imigrantes) pela morte de seu filho. Segundo ele, Jamie nunca pôde mostrar seu verdadeiro potencial nas aulas porque os alunos menos talentosos atrapalhavam o desenvolvimento dos mais talentosos, posição que é rapidamente debatida por Anders, que acredita que um grupo de alunos tem muito a ensinar para o outro.
O relacionamento de Liv e Per Erik é outra questão que é completamente invadida pelas ideias políticas de cada um deles, ele é um político de direita e ela tem ideais de esquerda, e embora ela diga que a relação ficou escondida por um tempo porque ele é pai de um aluno, o longa dá a entender que, na realidade, ela tem vergonha de estar namorando um homem de direita. A questão causa problema até na família de Liv, que é totalmente de esquerda e não consegue entender como ela pode passar por cima de pensamentos tão diferentes, e entre as amigas da diretora, que se perguntam se ideais políticos não refletem a personalidade e o pensamento das pessoas.
O filme abre uma série de assuntos, uma vez que tem muitos personagens, e pode apresentar muitas histórias e questionamentos, mas todos eles são permeados por questões políticas: um comentário sobre a possibilidade de Anders e seu namorado poderem adotar uma criança, que é rapidamente atribuído ao partido trabalhista; o fato de Liv ter protestado em favor de uma série de causas na adolescência é usado por Per Erik para dizer que ela se sente superior a ele; e claro, a morte de Jamie pelas mãos de Lykke se torna uma questão política em função dos pais das crianças.
Aspectos técnicos de Nossas Crianças
O filme é longo, mas o interessante é que ele não se torna cansativo. É verdade que o filme perde um pouco do ritmo na meia hora final, mas não é o suficiente para fazer o telespectador ficar entediado ou cansado e isso acontece porque o roteiro é muito instigante e os personagens são muito bem escritos.
Há uma grande variedade de personagens, por isso, a trama pode apresentar várias histórias diferentes, que ainda assim circundam o acontecimento trágico na escola. Então, ao mesmo tempo que acompanhamos a família de Lykke, também acompanhamos o pai de Jamie, a família de Liv e até os amigos da mãe (Anne Marit Jacobsen) de Liv e Anders.
A fotografia é bem clara, e os cenários têm tantos tons de branco que se tornam quase hospitalares, o que de certa maneira afasta o telespectador, assistimos ao filme analisando aquelas situações sem entrarmos de cabeça nelas, mas a ideia é essa mesmo, que a plateia possa ter uma interpretação fria da tragédia, uma vez que todos os personagens já estão completamente envolvidos por ela. O longa tem ainda ótimas atuações, todo o elenco parece estar bem afinado e Henriette Steenstrup, Thorbjørn Harr e Jan Gunnar Røise se sobressaem, mas até a jovem Ella Øverbye se sai muito bem como Lykke.
É interessante a maneira com que o filme abre uma série de tramas e reflexões, mas não necessariamente as fecha, como se deixasse a cargo da audiência refletir sobre o que foi mostrado e falado.
Nossas Crianças usa de uma situação terrível para analisar os costumes e ideais de uma sociedade, ao mesmo tempo, que faz a plateia analisar e questionar suas próprias convicções. O longa está disponível na plataforma da Supo Mungam Plus.
https://www.youtube.com/watch?v=Q6RwTHjowdI&ab_channel=SupoMungamPlus