O Direito de Viver
Filme é um desserviço para qualquer discussão séria sobre o assunto
O Dr. Bernard Nathanson (Nick Loeb) é um ginecologista que realiza aborto ilegais, porque no passado perdeu uma namorada em função de um aborto malsucedido, feito em uma clínica ilegal.
Nos anos 1970, ele se une ao jornalista Larry Lader (Jamie Kennedy) para lutar pela descriminalização do aborto, e atrai rapidamente uma série de pessoas que concordam com ele.
A iniciativa de Nathanson se transforma no famoso caso Roe contra Wade, que fez com que a Suprema Corte dos Estados Unidos reconhecesse o direito ao aborto.
Os fatos
A sinopse de O Direito de Viver dá a entender que o filme pretende abordar os acontecimentos que levaram a legalização do aborto nos Estados Unidos, em 1973, de maneira séria e verdadeira. Segundo os roteiristas e diretores Nick Loeb e Cathy Allyn, a ideia do filme é “mostrar os dois lados e deixar que a audiência decida”, no entanto, não é isso que vemos em cena.
O Direito de Viver usa sim do caso Roe contra Wade e alguns dos fatos que dizem respeito a esse acontecimento, mas sua intenção não é de maneira nenhuma mostrar os dois lados e sim fazer uma propaganda clara, embora talvez não tão declarada, contra a legalização do aborto.
O protagonista do filme é o Dr. Bernard Nathanson, que depois de ver uma namorada da adolescência falecer por causa de um aborto malsucedido, resolve se especializar no assunto para que outras mulheres não passem pela mesma coisa que ela passou. Quando ele começa a trabalhar com isso, o aborto ainda é ilegal nos Estados Unidos, mas ele é retratado como um homem consciente e cuidadoso, que só deseja ajudar mulheres em situações desesperadas.
O mesmo não pode ser dito das pessoas que se aliam a ele na causa, pelos mais variados motivos: Larry Lader, que quer lucrar com as clínicas de aborto, sem sequer se importar muito com a saúde de quem faz o procedimento; Betty Friedan (Lucy Davenport), escritora feminista e autora de A Mística Feminina, que só se importa com a causa; e mais uma série de mulheres descritas como “feministas”, que são raivosas, histéricas e comemoram um aborto como se comemora um gol em uma partida de copa do mundo.
O filme se autoproclama como uma obra que vai contar a “verdade, sem informações falsas”, mas é repleto de informações mentirosas ou mal-intencionadas.
Sentimentalismo barato
O Direito de Viver se baseia em três conceitos: conservadorismo, informações falsas – que honestamente parecem ter sido colocadas ali de maneira proposital e não porque quem escreveu o roteiro não sabia a verdade – e sentimentalismo barato. O filme usa de clichês do melodrama o tempo todo.
Nathanson é retratado no começo como um homem heroico, que faz abortos porque acredita que as mulheres que o procuram precisam de ajuda, mas aos poucos ele se torna ganancioso e para conquistar seu objetivo de legalizar o procedimento, ele espalha fake news e inventa estatísticas; enquanto Lader, em momento algum demonstra qualquer tipo de sentimento, ele apenas quer lucrar.
Mais tarde, o filme ainda mostra uma clínica de aborto, aparentemente legalizada, onde cada médico consegue fazer trinta e dois abortos por dia, e muitas vezes, quando a gestação já passa dos três meses. Além disso, tratam o procedimento como uma ida corriqueira ao dentista. Sarah Weddington (Greer Grammer) e Linda Coffee (Justine Wachsberger), as advogadas que deram entrada no caso Roe contra Wade também são retratadas como cruéis e mentirosas, já que ao invés de informarem Norma McCorvey (Summer Joy Campbell) onde ela pode fazer um aborto, deixam que ela tenha um filho indesejado para que ela possa ser usada no caso.
O Direito de Viver chega a mostrar detalhes de um feto – supostamente de três meses, mas que é enorme – quando Nathanson vê um ultrassom pela primeira vez e se arrepende do que vinha fazendo. Tudo isso, claro, com uma música triste no fundo.
Em compensação, o grupo de pessoas, definidas apenas como “católicas”, que são pró-vida, são retratados sempre como heróis, pessoas que abriram mão de suas vidas e carreiras por essa luta e que passaram anos sofrendo represálias por suas opiniões. Um desses personagens é Mildred Jefferson (Stacey Dash), primeira mulher negra a se formar em medicina em Harvard, que conta que tentou arduamente engravidar, mas que nunca conseguiu, como uma maneira de dizer que enquanto uma mulher quer tanto ter filhos, outras estão “assassinando” os seus ainda no útero.
É claro que o filme tem o direito de defender as ideias dos seus roteiristas e diretores, mas um dos problemas de O Direito de Viver é que ele passa uma série de informações erradas, seja sobre o procedimento em questão, seja sobre os fatos reais. O assunto pode e deve ser debatido, mas isso tem que ser feito de maneira honesta, sem uma visão tão obviamente tendenciosa, em um filme que tem como única intenção culpar mulheres que realizaram o procedimento e tentar envergonhar quem defende os direitos de escolha das mulheres sobre seus próprios corpos.
Aspectos técnicos de O Direito de Viver
Como se não bastasse o conteúdo pífio, o filme tem aspectos técnicos tão duvidosos quanto. O roteiro por si só, já é um absurdo, repleto de erros e informações falsas, com retratações absurdas de pessoas que defenderam a legalização do aborto nos Estados Unidos: as pessoas que não são católicas, em sua maioria judias, são debochadas, descuidadas, irônicas, gananciosas e tratam o procedimento como um evento corriqueiro; as feministas são raivosas, nervosas, odeiam homens indiscriminadamente e claro, querem que o aborto seja legalizado apenas pelo prazer de “matar” bebês e não porque acreditam que as mulheres devem ter direito de escolha; Norma McCorvey, que foi o motivo por trás do caso Roe contra Wade, tem um forte sotaque caipira, é pobre, suja, e completamente ignorante, e em determinado momento do filme, a narração de Nathanson diz que ela era “drogada e lésbica”.
O filme, em muitos aspectos, parece um dramalhão, com cenas impactantes, música triste e uma tentativa de transformar o médico abortista arrependido em herói, mas sua linha do tempo é confusa, as cenas são alinhadas de maneira que nem sempre fazem muito sentido e a obra, de uma maneira geral, soa como um filme de qualidade ruim feito para a televisão. Não existe nenhuma preocupação muito clara com o figurino, a história se passa nos anos 1970, mas a impressão que se tem é que o elenco apenas veste roupas atuais que poderiam se passar por roupas daquela década, quase como se eles fossem em uma festa à fantasia, não tivessem pensado nas roupas que iam usar e simplesmente tirassem algo do armário no último minuto, o que mostra uma falta de pesquisa básica da produção não só em relação às informações que eles passam, mas também em relação à época que eles retratam.
O elenco é composto basicamente de atores conservadores, já que qualquer outro profissional que entrou em contato com o roteiro desistiu do projeto quando percebeu sua mensagem. Stacey Dash e Greer Grammer cumprem seus papeis, mas não chamam a atenção, e Jon Voight, que interpreta um juiz da Suprema Corte contrário a legalização do aborto, até se sai bem, embora tenha pouco tempo de tela. Já Nick Loeb, o protagonista, é péssimo e apresenta um personagem extremamente caricato, que não sabe se quer ser herói ou um médico debochado que não liga para suas pacientes.
O Direito de Viver poderia ser só mais um filme ruim, com qualidade técnica medíocre e uma história sem sentido, o problema é que ele transmite informações falsas sobre um assunto polêmico e que ainda é um tabu. Não existe qualquer possibilidade de se discutir a sério um assunto que perpassa por tantos setores da sociedade com uma obra cuja intenção clara é agradar quem é pró-vida e convencer as pessoas que ainda não têm uma opinião formada e nem muitas informações dos ideais do roteiristas.
É vergonhoso que um filme como esse seja produzido nos anos 2020, mas infelizmente ele chega aos cinemas no dia 7 de setembro.