Diga aos Lobos que Estou em Casa, de Carol Rifka Brunt
Um romance de formação sobre o luto
Em Diga aos Lobos que Estou em Casa, o ano é 1987, e a adolescente June Elbus, de 14 anos, acaba de perder seu tio Finn, um famoso pintor, para uma “doença misteriosa” sobre a qual seus pais se recusam a falar. Então, ela se sente perdida, já que a única pessoa que parecia a compreender era seu tio. Sua mãe, irmã do falecido, não quer falar sobre o assunto. E sua irmã mais velha, Greta parece nem sentir a falta de Finn.
Até que um dia, um homem misterioso que se apresenta como Toby entra em contato com June para falar com ela sobre Finn.
A crise da AIDS
Diga aos Lobos que Estou em Casa se passa no auge da crise da AIDS e esse é um assunto que parece circular o livro todo. Embora os pais de June se recusem a falar sobre a doença de Finn, para um leitor dos dias atuais fica claro que ele tem AIDS, e que essa foi a causa da sua morte.
O fato dos pais de June não quererem nem que a menina saiba, nem falar mais sobre isso, mostra como a AIDS era vista nos anos 80. Primeiramente, era vista como uma sentença de morte. Não existia nem tratamento para a doença. A doença também era imediatamente relacionada com os homossexuais, uma vez que os primeiros casos atingiram homossexuais. Antes do surgimento da doença, a comunidade gay estava começando a ter uma liberdade maior, inclusive sexual. O que por outro lado era visto de maneira negativa por uma parte mais conservadora da sociedade. Para muita gente, os gays eram considerados promíscuos e devassos. O que piorou ainda mais a ideia que se fazia da doença. A ideia de que a AIDS estava necessariamente ligada a promiscuidade circulou em todos os lugares.
A AIDS na época de seu surgimento foi chamada de “câncer gay” e muita gente insinuou que essa seria uma punição -divina ou não- aos homossexuais. O governo americano por outro lado, não fez muito esforço para curar ou sequer entender a doença. Uma vez que ela estava, naquele ponto, atingindo apenas os gays. Demorou muito para que alguém se manifestasse sobre um possível tratamento. A doença só perdeu o estigma de “doença gay” quando uma mulher casada foi infectada através de uma transfusão de sangue. Embora, até os dias de hoje, na cabeça de muitas pessoas, a AIDS esteja diretamente ligada aos gays, sabe-se que isso não é verdade.
Diga aos Lobos que Estou em Casa representa esse cenário com perfeição
Finn é um pintor relativamente conhecido e respeitado. Mas nem ele consegue o tratamento para sua doença e sua própria irmã se recusa a falar sobre isso.
O livro também fala sobre homofobia, afinal, outro assunto proibido na casa de June é a sexualidade de seu tio. Tanto que a menina nem sabia que ele era gay. A mãe de June faz uma relação direta entre a doença de Finn e a sua sexualidade.
Mais do que isso, o leitor descobre durante a leitura que Toby, o homem que se aproxima de June, na verdade é o parceiro de longa data de Finn. June nunca o conheceu, pois ele nunca estava em casa quando ela visitava o tio. Isso por um pedido da mãe, que além de não aceitar o relacionamento dos dois, também achava que Toby era responsável pela doença do irmão. Quase como se Toby tivesse “transformado” Finn em gay.
Para June por outro lado, a sexualidade do seu tio nunca foi importante. Nem era algo que passava pela sua cabeça. Mas diferentemente de sua mãe, ela passa a aceitar com mais naturalidade o relacionamento dele e de Toby.
O livro ganha pontos por ter personagens LGBTQ+ cujas histórias não se resumem a sua sexualidade. E também por discutir esse assunto sem que ele seja, necessariamente o tema principal do livro.
O luto em Diga aos Lobos que Estou em Casa
Outro assunto que chama a atenção no livro é naturalmente, o luto. Quando o livro começa, Finn já está morto. Nós o conhecemos apenas através de flashbacks. Mas a sua presença permeia o livro inteiro, uma vez que todos os personagens do livro o amavam e, portanto, são ligados pela sua existência.
June está perdida, pois perdeu seu conselheiro e a pessoa que ela mais amava no mundo. Ela sabe que o resto da sua família está de luto. Mas ela não consegue ver isso com clareza e acredita que o seu sofrimento é maior que o de todos.
Sentimentos confusos
Para June, as atitudes de sua mãe, como não falar sobre Finn, nem sobre sua doença, proibir Toby de ir ao funeral de Finn e mais tarde proibir que June converse com Toby, só provam que ela não amava o irmão e que a sua morte foi um alívio ao fardo da doença. Já Greta, sua irmã, parece mais ocupada em sair, ir em festas e se divertir do que pensar no tio. Para June, embora as duas tenham passado a infância na companhia de Finn, Greta já nem se lembra mais dele, nem sente sua falta.
As teorias de June caem por terra quando ela percebe que sua mãe também está sofrendo e também sente falta de seu tio. É natural, embora não totalmente livre de preconceitos, que uma mulher que viu seu único irmão sucumbir a uma doença tão cruel quanto a AIDS culpe o parceiro de longa data do falecido. E que desenvolva então um sentimento de raiva por toda aquela relação e pela orientação sexual que, supostamente era a culpada pela doença. Quando ela se recusa a falar sobre a doença ou sobre o irmão, ela só não quer dar mais poder aquilo. E quando ela proíbe June de conversar com o homem que para ela é o “culpado” pela morte de seu irmão, ela só quer proteger a filha. Embora as duas atitudes aumentem o preconceito que já ronda a situação e a confusão de June.
Já Greta usa as saídas e as festas como uma maneira de esquecer a doença e a morte de seu tio. Quando confrontada pela irmã sobre o por que dela não demonstrar que sente falta de Finn, Greta fala: “Você acha que uma pessoa que eu conheci a vida toda morre e eu não ligo para isso?”. Diga aos Lobos que Estou em Casa fala sobre o luto e sobre como cada pessoa lida com ele de uma maneira diferente.
As diferentes tristezas
Para June, o luto se vive com sentimentos extremos e tristezas gigantescas. Para a sua mãe, é ignorando tudo e jogando a culpa da morte em terceiros. Para Greta, é se ocupando em outras atividades. Nenhum luto, no entanto, é mais importante ou mais sentido que o outro.
Quando June começa a conversar com Toby, ela percebe que o luto dele é diferente. Toby prefere lembrar dos momentos bons que ele e Finn tiveram, de como eles se divertiram e do quanto eles se amavam. Por isso, ele conta histórias para June que mostram um lado do tio que a menina não conhecia. Ele também a apresenta a outros amigos de Finn, que também sentem a falta dele; e a comunidade artística da cidade, que sente que perdeu um grande talento e que respeita o trabalho de Finn.
O que o livro diz é que não devemos julgar os sentimentos de outras pessoas. Pois cada pessoa reage de maneira diferente a uma situação.
Romance de formação
Diga aos Lobos que Estou em Casa também é um romance de formação, no sentido mais clássico da palavra. Ele retrata a adolescência e a chegada na vida adulta de June.
June é uma adolescente comum, que tem todas as dúvidas da sua idade. Embora ela seja um pouco peculiar e goste de coisas antigas, um gosto que ela partilhava e que era estimulado pelo tio.
Diga aos Lobos que Estou em Casa é um romance de formação justamente porque June descobre várias coisas durante a trama que a mudam permanentemente e a fazem crescer. Tanto no sentido se tornar adulta, quanto no sentido de se torna uma pessoa melhor.
June
Primeiro ela precisa lidar com a morte do seu tio, que era seu confidente. Depois, ela passa pelo luto, que é certamente o período mais difícil quando se perde alguém. No meio do livro, ela descobre sobre a sexualidade de seu tio e sobre seu parceiro. Ela tem que aprender também a ser mais tolerante. Apesar da opinião de sua mãe e do mundo todo, que diz que a relação de Toby e Finn era errada, seja em função da doença, seja porque o mundo era mais homofóbico. Ela descobre por fim, que medir os sentimentos dos outros em função dos seus é um erro. Que cada um sente de um jeito e com uma intensidade diferente. Isso não faz ninguém melhor ou pior do que ninguém.
Com a convivência com Toby, ela também aprende a respeitar outros estilos de vida. E começa a perceber que talvez ela esteja se apaixonando por Toby. É um sentimento que não é estimulado por ele, que além de ser gay, e viúvo do tio de June. Ou seja, ele é bem mais velho que a menina. Mas não deixa de falar sobre o primeiro amor e nesse caso, sobre a primeira decepção.
É inevitável que June cresça com toda essa experiência. E esteja mais perto da vida adulta do que da vida de uma adolescente.
Diga aos Lobos que Estou em Casa é um livro delicado e emocionante. Ele toca em assuntos que ainda precisam ser discutidos, mas que não os coloca necessariamente em primeiro plano. O resultado é uma história sobre uma adolescente aprendendo mais sobre o mundo e sobre si mesma, enquanto lida com a morte de um ente querido.