A Gente Se Vê Ontem, Netflix com Spike Lee
A viagem no tempo como metáfora para mortes de jovens negros inocentes
Em A Gente Se Vê Ontem, dois melhores amigos muito talentosos constroem uma máquina do tempo para participar da feira de ciências. Quando o irmão mais velho de um deles é assassinado injustamente pela polícia, os dois decidem voltar ao passado para tentar evitar a tragédia. Inspirado diretamente no caso que ocorreu na Califórnia ano passado, onde um homem negro foi morto por policiais apenas por estar segurando um celular, Stefon Bristol (que foi um dos roteiristas de Infiltrado na Klan e aqui faz sua estreia como diretor) elabora uma diferente trama sobre viagem no tempo.
A obra reverencia o gênero a todo o momento (da ponta de Michael J. Fox como professor, até as explicações manjadas de como ela funciona: o que é alterado no passado, afeta o presente etc.), à medida que critica o sistema policial americano (mas também completamente reconhecível no Brasil), que atira primeiro e pergunta depois, quando se trata de negros.
A Gente Se Vê Ontem
Com respaldo do próprio Spike Lee na produção, Bristol conduz uma narrativa diferente do formato e ao mesmo tempo reconhecível. Por isso, a história não perde tempo e já deixa claro que a invenção vem sendo desenvolvida há um tempo. Estabelecem regras (apenas 10 minutos no passado, o risco de encontrar seu outro eu, os pequenos efeitos borboleta) e todo um lance envolvendo física quântica e placas de sistema que não precisam ser claramente compreensíveis para alguém com QI normal, mas que ajudam a fundamentar a “ciência” do filme.
Mesmo o trabalho deles para a feira de ciências não é apenas pela glória. Dada a realidade que vivem, o que os dois buscam é revolucionar o mundo. E com a invenção, conseguir sair daquela vida. Tudo no enredo gira em torno da existência da sociedade negra, não se vitimizando, mas expondo as cruezas através da ficção científica.
As viagens no tempo
Outro elemento do gênero que é bem resolvido no longa, são a sequências de erros cotidianos. Uma coisa leva a outra, sabe? A dupla sempre frequenta a mesma vendinha do bairro, que semanas depois será assaltada. Nessa vendinha, a protagonista encontra o ex, o que leva a um conflito resolvido pelo irmão mais velho, que semanas depois estará num churrasco e tem de sair dele pra não encontrar com o ex da irmã, onde então será confundido com os dois ladrões da vendinha. E a tragédia chega.
Portanto, cada vez que a dupla volta no tempo, eles precisam calcular não só os minutos que tem para tentar impedir a fatalidade, como também escolher os lugares-chave para isso. E nisso, o diretor quebra expectativas, algumas acertando pelo efeito inesperado, outras frustrando pelo anti-clímax. Afinal, mesmo com sangue brotando dos peitos e sendo vomitados, com palavrões rodando de boca em boca, A Gente Se Vê Ontem começa muito com cara de sessão da tarde. Seu elenco jovem é muito interessante (Eden Duncan-Smith em especial). Mas o filme só começa a acertar os socos no estômago à medida que a trama avança.
Que tal uma sessão de Netflix hoje?
Atenção também às referências pontuais que são colocadas em tela. Desde as bandeiras, até a icônica rua Malcom X – nada está ali por acaso. Tudo contribui para a mensagem maior do longa. No mais, depois de tantos saltos, mortes que são feitas e refeitas, o que se compreende é que algumas coisas não podem ser alteradas, são inevitáveis. Não exatamente na história do filme, mas na história dos negros americanos (e brasileiros) como um todo. Ou seja, é um efeito cíclico, que em nada mudou em todos esses anos. Por isso, aquele desfecho aberto, prova que nunca deve se desistir de continuar lutando contra o sistema e tentar revertê-lo a favor da vida, mesmo que a realidade diga ao contrário.
https://www.youtube.com/watch?v=CPtQoANmRKs