Açúcar, sobre uma moça assombrada pelo passado
Bethânia (Maeve Jinkings) é dona de uma propriedade na Zona da Mata, que antes foi de seus pais e que costumava ser um engenho de cana-de-açúcar. Zé (José Maria Alvez), um dos moradores do local, quer que a casa de Bethânia se torne um centro de cultura da cidade, mas Bethânia não quer abrir mão da sua propriedade.
Quando Alessandra (Dandara de Morais), uma infiltrada a mando de Zé, começa a trabalhar como faxineira na casa de Bethânia, a mulher tem que enfrentar pela primeira vez o seu passado e o passado daquelas terras.
Açúcar e a escravidão
Um dos temas centrais de Açúcar é a escravidão. Embora ela não seja propriamente citada no filme, fica claro que tudo gira em torno desse assunto. Bethânia obviamente não escravizou ninguém, mas os bens de sua família são fundados na exploração do povo negro, uma vez que a casa que ela tanto protege, antes foi um engenho de cana-de-açúcar e que mais tarde, viveu e prosperou do trabalho de empregados negros. A protagonista, por sua vez, parece estar disposta a fazer de tudo para se afastar disso, seja na sua tentativa de proteger a casa, seja na sua vida pessoal.
Ela se porta como superior a Zé e a Alessandra, e se dirige a eles apenas para dar ordens. Ela também despreza as manifestações culturais e religiosas dos dois, que estão ligadas ao candomblé e, portanto, aos negros. Também é por isso que ela não admite a ideia de que sua casa se torne um centro cultural da Zona da Mata. Bethânia também se veste e se arruma de maneira bem diferente dos moradores do local, ela está sempre de vestido e de salto, enquanto Alessandra por exemplo, anda por aí de shorts, camiseta e chinelo.
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O mais flagrante no comportamento de Bethânia é ainda a maneira com que ela alisa seu cabelo quase de forma obsessiva. Acompanhamos cenas em que ela seca e passa a chapinha nos fios com vigor e determinação, afinal, mais uma vez, o cabelo que não é liso está geralmente ligado aos negros. Acima de tudo, ela acredita que Alessandra e Zé a devem algo, porque a avó de Alessandra foi empregada da mãe de Bethânia, que lhe cedeu as terras aonde Alessandra hoje vive com a família.
No entanto, embora Bethânia tente, ela mesma não consegue fugir dessa ancestralidade que ronda a Zona da Mata. Ela pode alisar os cabelos, mas isso não muda sua verdadeira forma; ela pode desprezar as manifestações do candomblé mas, como os praticantes, também sente alguma coisa quando escuta as cerimônias durante a noite; e ela pode se portar como superior a Zé e Alessandra, mas fica claro que ela sente uma atração quase irrefreável por Zé.
O passado
Açúcar quer falar justamente sobre o passado e mais especificamente sobre essa enorme dívida histórica que o Brasil tem com a população negra. O filme se define como um drama, mas tem um quê de suspense, embora não tenha nenhuma trama ou vilão aterrorizante. No entanto, o lugar onde o filme se passa é por si só sinistro, assim como a casa de Bethânia e algumas situações que acontecem durante o filme podem não ser classificadas como sobrenaturais ou mágicas, mas são no mínimo, inusitadas.
Bethânia tenta a todo custo fugir do passado, mas ele continua a assombrá-la, seja na insistência de Zé para comprar sua casa, seja nas cerimônias de candomblé que ela escuta à noite, seja em Dandara andando pela casa e espionando tudo que ela faz. Bethânia também quer se diferenciar de seus antepassados que escravizaram os antepassados de Alessandra e Zé, mas ela não consegue. Ela também acha que as pessoas lhe devem favores e que o trabalho deles não merece ser remunerado.
Embora o filme dê indicações de que vai tomar rumos mais assustadores, o que mais apavora mesmo é justamente a maneira com que o roteiro traz à tona os mesmos comportamentos da época da escravidão, mesmo que estejamos há anos luz de diferença e, que na teoria, nós saibamos que a discriminação é crime, além de moralmente errada. Bethânia foge e foge e tenta com todas suas forças, mas não consegue escapar de tudo que aconteceu na casa de sua família e menos ainda, da normalização e da banalização da escravidão ou de seu próprio preconceito.
Aspectos técnicos de Açúcar
O filme usa poucos cenários e poucos atores e se passa inteiramente na Zona da Mata. As cenas acontecem ou na casa de Bethânia ou nas redondezas. O elenco também é pequeno, mas se faz suficiente. O filme no entanto, não retrata uma história simples, seu roteiro é bem trabalhado e cheio de nuances. Açúcar quer falar sobre ancestralidade e sobre as maldições que carregamos mesmo que tentemos fugir delas.
Açúcar também fala sobre escravidão e sobre dívida histórica e nesse aspecto é um filme que vai ter um reconhecimento maior no Brasil, que foi um país escravocrata e que ainda assiste – muitas vezes de braços cruzados – as consequências disso. Outro filme que também traz esse assunto à tona, e também usa de elementos do terror e do suspense para isso é O Juízo, outro longa nacional recente.
O figurino também é bem pensado, as duas mulheres que mais aparecem em cena, Bethânia e Alessandra, são completamente opostas uma à outra, inclusive nas roupas que usam. Bethânia está sempre minuciosamente arrumada, cabelos alisados, saltos altos e vestidos claros impecáveis, mesmo quando está dentro de casa, tirando a poeira dos móveis. Já Alessandra está sempre de camiseta, shorts e chinelo e não parece vaidosa ou preocupada com a sua aparência.
Considerações finais
Claro que é possível argumentar que existe uma diferença social entre as duas mulheres e que por isso, Bethânia teria acesso a roupas “melhores” ou pelo menos mais chiques e mais elegantes que Alessandra, mas essa também é uma maneira do filme ressaltar a maneira com que Bethânia de fato se sente, uma patroa, quase uma sinhazinha, tão imaculada e limpa quanto seus vestidos claros e rodados.
O longa consegue prender seu espectador, mesmo que ele não revele seus intentos logo de cara, e consegue passar sua mensagem, sem escancarar o assunto. Açúcar é um filme que fala com o Brasil e que incorpora elementos da nossa cultura à sua trama, que beira ao mistério e ao suspense. O filme entra em cartaz no dia 30 de janeiro.