Bacurau, forte crítica política com mistura de gêneros
Na descrição de seus diretores, Bacurau é um filme de aventura ambientado no Brasil “daqui a alguns anos”. Assim como ocorreu com o longa anterior de Kléber Mendonça Filho, Aquarius, em 2016, Bacurau teve sua estreia mundial na principal mostra do festival de Cannes. Mas esse sim foi vencedor do prêmio do júri. O filme foi rodado no Sertão do Seridó, divisa do Rio Grande do Norte com a Paraíba. As locações foram encontradas depois de a equipe percorrer mais de dez mil quilômetros em Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. As filmagens duraram dois meses e três dias, com uma equipe de 150 pessoas.
Bacurau traz a história clássica da pequena comunidade que é ameaçada por invasores misteriosos. Mas é, além disso, uma grande alegoria. Depois da morte de uma senhora, a cidade imaginária desaparece do mapa, o que lhe confere uma aura mítica. Ao mesmo tempo, ela é um foco de resistência, onde diferentes líderes orientam a comunidade. Parece um reduto que reúne os últimos bravos do mundo em todos os campos. Um lugar onde todo mundo é pobre, mas ninguém é coitado.
Bacurau
O filme se passa num futuro próximo, mas temos a impressão que diferentes temporalidades coabitam ali. O arcaico e o hipermoderno se alternam e se mesclam. Então é como se estivéssemos fora do tempo. Bacurau é o fruto de observações das contradições sociais que aparecem na representação do Sertão, do nosso aborrecimento, do nosso desejo de surpreender. Assim, mostra as pessoas deste mundo pobre e isolado que se vingam daqueles que sempre os viram como “simples”, “engraçados”, “frágeis”, enquanto eles são, na verdade, muito complexos e interessantes.
O aspecto complicado dessa ideia é tornar este lugar interessante e acolhedor, como uma comunidade humana, isolada e quieta, mas consciente do que é e de onde vem. E tão pequena que seria fácil imaginar que alguém tentasse brincar com ela. É intrigante pensar em pessoas de fora tendo a capacidade e a coragem de apagar uma região do mapa. É uma demonstração de poder que provavelmente acontece o tempo todo. Às vezes, a burocracia é usada contra alguém e o poder é usado para destruir.
Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles
Juliano Dornelles, co-diretor, diz: “Bacurau é um projeto que vem sendo desenvolvido desde 2009, quando era só uma ideia, até ser filmado em 2018. Enquanto o roteiro se transformava, o país e nosso cotidiano também se transformavam. Estrear em Cannes nesse ano de 2019 é dar um lugar de respeito ao Brasil, seu cinema e sua cultura. A tão comentada “mistura de gêneros” é a base para que a gente se sentisse totalmente livre pra contar a história dessa comunidade de maneira não muito explorada no cinema brasileiro. O filme é exatamente isso, o encontro conflitante e às vezes explosivo entre dois mundos bem diferentes.”
Nas palavras de Kléber: “É estranho como “Bacurau” foi sendo alcançado pelas histórias do mundo. A escrita do roteiro já vinha sendo feita há anos, até que Trump foi eleito. Lembro bem como, durante meses, Trump era uma piada e, de repente, ele estava eleito, e o roteiro foi sendo impactado aos poucos, não por mudanças no plot, mas na maneira como isso mexia com o que havíamos escrito. O mesmo ocorreu com os acontecimentos recentes no Brasil, de uma piada de mau gosto como tratar livro como lixo.”
“Estávamos lidando com uma espécie de corrida contra a realidade durante todo o processo de escrita do roteiro. O mundo atual parecia não querer colaborar e as notícias que líamos diariamente eram (e ainda são) tão absurdas e distópicas que Bacurau foi ganhando cada vez mais uma plausibilidade que a princípio nem era o que importava mais pra gente. Mas foi acontecendo e ainda acontece, o Brasil e o mundo estão nos fornecendo “teasers” semanais do filme”, complementa Juliano.
Diversos gêneros presentes
Assim, o longa se apresenta como um filme de gênero. Mas diversos gêneros parecem estar presentes: a ficção científica, o faroeste, o slasher movie… Sem falar no gênero tipicamente brasileiro do filme de cangaço, fortemente ligado ao imaginário cinematográfico do sertão. Portanto, esse imaginário é encarnado pelo personagem de Lunga. Ele é mítico, vai e vem quase como uma assombração. Lunga é provavelmente uma mistura de elementos trazidos pela história e cultura popular. Ele mora escondido em sua fortaleza, uma represa com vista para um reservatório seco, e sabemos desde o início que ele é um homem procurado, possivelmente um criminoso. Entretanto, ele também é um herói popular e regional, e é herdeiro da cultura do cangaço.
Sônia Braga (Aquarius), o alemão Udo Kier (Melancolia) e Karine Teles (Benzinho) fazem parte de um elenco composto por dezenas de atores, como Barbara Colen, Silvero Pereira, Thomas Aquino, Antonio Saboia, Rubens Santos e Lia de Itamaracá. E Udo Kier afirmou: “Já fiz mais de 200 filmes, 100 desses são ruins, 50 dão para assistir alcoolizado, 50 são bons, mas foi com Bacurau que eu chorei pela primeira vez de emoção”. Olha quanta responsabilidade!
E o que mais?
A trilha sonora apresenta músicas pop e peças instrumentais, incluindo composições eletrônicas futuristas. Mateus e Tomaz Alves são irmãos talentosos. Eles misturaram um coquetel de Geraldo Vandré, Jerry Goldsmith com um toque de eletrônico. Diretores e o público vibram com a presença de uma peça tão poderosa quanto “Night” de John Carpenter. Ainda podemos ver outra discreta homenagem ao mestre no nome da escola do povoado, “João Carpinteiro”.
O filme trata de questões bem atuais como a das armas, da opressão de minorias, gêneros e sexualidade. Bacurau é um filme que denuncia e escracha muito bem a perversidade da nossa época. Há o desprezo pela cultura, o preconceito racial, regional, sexual e intelectual. Além de corrupção e subserviência de uma certa classe de dirigentes… Bacurau tem de tudo, está tudo lá. E vem acompanhado de tapas na cara da sociedade, claro.
O filme é forte, pesado, nos faz pensar nas muitas condições a que somos submetidos como seres “inferiores” nessa sociedade hipócrita. Com um elenco espetacular, uma trama sensacional, a trilha deliciosa, a vontade que dá é de realmente bater palmas no final. Bacurau estreia nos cinemas no dia 29 de agosto e você deve muito assistir, e quem, sabe, aplaudir.