Cursed: A Lenda do Lago – 1ª temporada
História ressignifica lenda arturiana em uma superprodução empolgante, com uma fantasia de primeira
A meia hora inicial da série de 10 episódios pode parecer ter saído dos filmes de “Malévola”, com cores saturadas e figuras limpinhas demais, mas logo essa impressão é deixada de lado quando Cursed mostra a que veio, com tripas voando pelo ar, personagens mostrando suas verdadeiras intenções e a trama ganhando contornos cada vez mais intrincados, fazendo não só um bom uso, como um uso bastante inventivo que reorganiza e ressignifica vários elementos das tão famosas lendas arturianas, sem jamais soar como um derivado de “As Brumas de Avalon”.
O escritor Thomas Wheeler sempre foi fã dos mitos da Távola Redonda, mas nunca conseguiu apresentar uma heroína para sua filha de 11 anos. Então, resolveu escrever o livro que deu origem ao seriado da Netflix (um dos maiores do catálogo, certamente). E ainda convidou o renomado Frank Miller para ilustrar os capítulos. A história parece ter sido pensada com exatidão para as telinhas, pois toda a produção acerta em suas intenções. Dos cenários variados e suntuosos, até o figurino, passando pela escalação de elenco e fotografia. Sim, ela ainda sustenta certa “limpeza” aqui e ali, mas logo os banhos de sangue e vísceras vão tomando conta, como se corrompesse o enredo gradualmente.
Cursed: A Lenda do Lago
Emprestando os mitos arturianos, dos quais conhece bem, Wheeler reinventa a roda. Ele insere novos elementos que enriquecem a mitologia desse mundo antigo, habitado por homens e feéricos, além de inúmeras facções (dos vilanescos Paladinos Vermelhos a duas frentes inimigas de invasores vikings, passando por Soldados da Trindade do Vaticano, até mesmo soldados palacianos, mercenários e guerreiros da selva). Isso remete imediatamente a “Game of Thrones”, pelas possibilidades de segmentos entre tribos, reinos e povos, onde as alianças são frágeis e tudo está sempre à beira da guerra.
A produção também não poupa na violência, jamais gratuita. Ela leva idosos, mulheres e crianças em igual proporção a de cavaleiros. Mescla Guerra Santa com ambição típica de líderes e a resistência de povos oprimidos. Destaque ainda para a belíssima direção de arte, que chama atenção em algumas sequências, como do primeiro encontro mostrado entre Merlim e a Viúva num campo de cruzes, como se retirado de “A Paixão de Cristo”; ou a visita ao interessante e asqueroso submundo, entre outros.
O elenco
Katherine Langford puxa o elenco afiado com uma atuação naturalista. Ela dá vida a uma nova versão de Nimue, a famosa “bruxa” das lendas (também conhecida posteriormente como A Dama do Lago); saindo fora dos padrões normativos de beleza, sua protagonista tem empatia e determinação. Além disso, é fiel ao objetivo que lhe foi imposto, abolindo qualquer panfletagem forçada, ainda que seja de fato uma das maiores representantes do feminino na fantasia (superando a petulante Sabrina, a machona She-Ra ou a debochada Ava de “Warrior Nun”).
Sim, é ela quem porta a Espada do Poder (é chamada assim na série, mas você sabe de qual espada estou falando) e que começa a tomar as rédeas de liderança sobre um povo dentro de um contexto crível e nada forçado, com episódios que jamais enrolam o espectador (algo que “The Witcher” poderia aprender), nem caem em armadilhas adolescentes (que provavelmente não terão estômago para tanto).
E o que mais?
Atenção ainda para o carismático Devon Terrell como um Arthur diferente de tudo o que já se viu nas mídias; um Merlim melindroso e tranqueira na figura do shakespereano Gustaf Skarsgård; a improvável, receosa e intrigante Morgana de Shalom Brune-Franklin; além do interessantíssimo Monge Choroso (sua verdadeira e famosa identidade só será revelada no final), que carrega o melhor de Darth Vader, Kylo Ren e do Príncipe Zuko, com sua dualidade sempre em cheque.
Não menos importante, temos o prodígio e virtuoso Billy Jenkins como Esquilo (mas também guarda uma real identidade); a engraçadíssima Lily Newmark como Pym (que ganha uma subtrama só para ela e merecia ainda mais); a detestável e promissora Emily Coates como Irmã Íris, incluindo o típico abominável de sempre Peter Mullan como Padre Cardem (afinal, nazistas e fanáticos religiosos sempre são vilões fáceis de se odiar em qualquer história).
Sem caminhar pelas obviedades e investindo na mitologia e inventividade, com o material-base em mãos, Wheeler realiza aqui uma das maiores produções do ano. Se superadas as representatividades por parte de um público preconceituoso, pode crescer ainda mais. Indo de “Game of Thrones” (com composições de grandes batalhas campais a altura e mortes inesperadas típicas) a “O Senhor dos Anéis” (Excalibur é, em certo sentido, sugestionada como uma espécie de o Um Anel desse mundo), Cursed: A Lenda do Lago logo ganha cara própria e assume seu lugar de direito, seja no trono, seja no coração do espectador.