Jeremias: Pele, de Rafael Calça e Jefferson Costa

Uma das Graphic MSP mais marcantes e emocionantes, Jeremias: Pele trata o racismo de maneira real e sensível, com uma arte espetacular.

Um dos primeiros personagens criados por Mauricio de Sousa, Jeremias nunca teve papel de destaque, assim como vários outros coadjuvantes, fora uma história ou outra nos gibis mensais ao longo de cinco décadas. Isso é corrigido de maneira honesta e relevante, com o bom uso autoral do projeto Graphic MSP. Este é o projeto onde autores e artistas emprestam os ícones do grande criador para entregar uma nova interpretação. Dessa maneira, o roteirista Rafael Calça e o desenhista Jefferson Costa foram chamados para tratar de um tema ao mesmo tempo delicado e importante.

Colocam Jeremias vivendo na grande São Paulo e tendo seu primeiro contato com o racismo. Vemos o impacto que isso gera nele num primeiro momento; a maneira como a família lida com a situação; e o jeito que o protagonista encontra para superar esta sina da comunidade negra.

Jeremias: Pele

O autor: Rafael Calça

Sem qualquer dramatização barata ou gratuidade, Calça imprime na história vivências que ele próprio teve na infância. Um retrato bastante real da vida de muitos outros. Assim, trata tudo com naturalidade (a rotina da família, na escola, pelas ruas) e sensibilidade (o preconceito velado da professora, o racismo escrachado dos bullies, a maneira como os adultos comunicam isso para as crianças – sem traumatizá-las no processo, mas ainda assim, sinceros). Tudo isso enquanto faz uso certeiro de diálogos onde os personagens falam como a gente. E de simbolismos poderosos embutidos numa palavra ou em uma construção de frase.

Pequenas sutilezas tornam o texto do autor ainda mais rico no enredo, dando a Jeremias uma jornada de autodescoberta. Não é isenta de dor nem sofrimento, mas traz suas devidas recompensas ao final. As sequências do pai sendo abordado pela polícia, por nenhuma razão que não a cor de sua pele, e a do menino sentindo na pele o racismo mais uma vez em uma viagem de ônibus, são fortes e sintetizam todo o poder desta publicação.

O desenhista: Jefferson Costa

Em ótima química, Jefferson Costa – um dos melhores quadrinistas desta geração – nos presenteia com uma narrativa fluída, com quadros que ganham vida e saltam aos olhos. Cores ora vibrantes, ora soturnas. A sensação é literal, já que realmente parece existir certa movimentação no trabalho de luz e sombras e de composição das figuras. Com uma decupagem cirúrgica e excelente uso de enquadramentos e ângulos. Repare em como cada figurante se comporta no canto dos quadros; nos detalhes dos cenários suntuosos; na maneira como as pessoas se movimentam; nos olhares de escanteio; os zooms dramáticos; os requadros silenciosos ou os balões sem fala, para denotar que naquele momento nada mais importa que já não tenha ficado claro.

Jeremias: Pele

Liberdades artísticas também são usadas de maneira brilhante aqui. Como por exemplo, quando Jeremias se vê minúsculo na carteira após uma humilhação social; ou quando dá a volta por cima em seu próprio clímax, ficando gigante diante da sala de aula. O traço do desenhista, solto e vibrante, fornece não só muita energia ao quadrinho, como extremo carisma aos personagens. No mais, vários easter-eggs de outras Graphic MSP estão espalhados pelas páginas para premiar os fãs desse universo compartilhado. Alguns são relevantes para a trama, como no caso de Astronauta e seu Chefe. Outras, vem nas entrelinhas, como a bela homenagem ao Seu Graciano. O desenhista (que faleceu em fevereiro deste ano), nomeia o avô do protagonista, sendo figura central para sua base moral também.

Jeremias: Pele

No mais, algumas rimas visuais e contextuais enriquecem a obra. Como no início da HQ, com a família de Jerê saindo do cinema e entrando num beco (fazendo uma alusão a origem do Batman); da cena próxima ao desfecho (com ele “conquistando o espaço” no planetário); ou do quadrinho que o menino curte. Muito além do divertido debate entre adaptações (“no gibi ele é mais assim, no filme ele é mais assado”), o super-herói ali – O Guardião da Noite – é uma versão do Besouro Verde, onde a estrela real sempre foi seu sidekick, Kato, um homem asiático (aqui, reinterpretado por um negro, mantendo o contexto de minoria que recebe tapinha nas costas, como se para “compensar sua condição”).

Por fim, as ambientações são um show à parte. Com um retrato bastante fiel do centrão de SP e da precisa inclusão da arte e de figuras históricas para complementar o argumento, como as estátuas da Mãe Preta e do Zumbi dos Palmares (que fortalecem uma sequência importante na história) e da cena com os quadros no museu. A edição é um capricho, indo do logo (e sua tipologia afro) aos extras ricos, que revelam toda a origem de Jeremias e o trabalho artístico de seus autores. Um importante material para se figurar nas bibliotecas de todas as escolas.

Jeremias: Pele é, assim, um quadrinho lindo, tocante e importante, mas acima de tudo, é a voz de muitos.

Jeremias: Pele

Nome Original: Jeremias: Pele
Autor: Rafael Calça e Jefferson Costa
Editora: Panini Comics Brasil
Gênero: Quadrinho
Ano: 2018
Número de Páginas: 96

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