Mank – Tecnicamente impecável – Netflix
Obra vende a alma para teorias da conspiração da velha Hollywood
Na década de 1990, Jack Fincher foi um dos profissionais do meio que caiu na ladainha de Pauline Kael, que defendia Herman Mankiewicz como único roteirista de ”Cidadão Kane” e que Orson Welles não teve participação nisso. História essa que se provou uma falácia e que já fora desmentida nos próprios anos 1990.
Na ocasião, o projeto não foi adiante, porque nenhum investidor se interessou. Agora, com o apoio da Netflix, seu filho e um dos maiores cineastas de todos os tempos, David Fincher assumiu a produção e a realizou – quase – tal qual seu pai havia imaginado, mas diminuindo algumas falsidades polêmicas e preservando outras.
Mank
O filme, em suma, narra a história tumultuosa de Herman J. Mankiewicz com a política do período, seus problemas com álcool, amigos e família, tudo isso enquanto escreve a primeira versão do roteiro de um dos maiores filmes já realizados, à medida que também faz um bom proveito para evidenciar a forte influência que os executivos exerciam sobre as produções daquela época (e também na política e na sociedade).
Para apreciar este longa, porém, são necessários três requisitos: 1) ser apaixonado pela história da Velha Hollywood; 2) ser um estudioso de cinema; 3) entender o mínimo das politicagens norte-americanas dos anos 1930 e 1940.
Portanto, ciente de que essa é uma obra para poucos, Fincher fica à vontade para realizar um trabalho apaixonado em tom de TCC, para um nicho. E isso se evidencia principalmente no aspecto técnico (do qual Mank deve abocanhar muitos Oscar, mas nada além disso), como o belo trabalho de luz e sombra, da trilha sonora que emula produções das décadas de 1930 e 1940, das capitulações engenhosas e estilosas envolvendo os flashbacks (como se fossem um roteiro), cenografia e figurino. Realmente é de encher os olhos.
Fincher + Welles
E mesmo que flerte com o visual do próprio ”Cidadão Kane”, o diretor tem uma identidade muito própria para ficar só naquilo. Assim, ele explora outras vertentes estéticas, para entregar um material que também tenha sua própria cara (mas claro, ainda preservando algumas referências ao trabalho de Welles).
Os grandes momentos de Mank estão justamente na viagem ao passado, da suas conturbadas relações com William Randolph Hearst, Louis B. Mayer e Irving Thalberg (principalmente), enquanto passeia pela Era de Ouro de Hollywood, transitando entre os estúdios da MGM, Paramount etc, com citações a outras obras-primas do período (em efeito de comparação, essa é uma versão mais sóbria do que vimos Tarantino fazer em ”Era Uma Vez em Hollywood”).
No elenco, Gary Oldman se encaixa bem, sabendo colocar a ironia e a ira nos momentos certos (mas nem de longe é um dos seus papéis mais marcantes). Lily Collins, Amanda Seyfried e Tuppence Middleton dão apoio em suas coadjuvantes. Quem realmente brilha por aqui são os veteranos Arliss Howard (como Mayer) e Charles Dance (como Hearst), mesmo aparecendo pouco. E Tom Burke, bem, é assustadoramente idêntico ao Orson Welles de 24-26 anos que realizou a grande produção que é quase reverenciada aqui.
Se liga nas fake news
Mesmo apoiado por um tratamento técnico suntuoso e seus astros de peso, com bom recorte histórico do período, o cineasta escorrega em Mank justamente nas suas intenções. Veja bem, boa parte da narrativa trata das fake news que assomavam na época (inclusive envolvendo um candidato a governador, que os magnatas não queriam de jeito nenhum no poder, por isso “produziam”, literalmente, mentiras, dentro de seus estúdios).
Por isso mesmo soa tão estranho que Fincher se deixe levar por essas mesmas fake news (nem de longe tão “news” assim) a fim de resgatar Mankiewicz ao pódio, como se uma invencionice fosse necessária para isso. Não, ele foi um grande roteirista e merece todos os créditos naturalmente (mesmo que na ocasião ele tenha concordado em não recebê-los, mas depois voltou atrás e pediu para tê-los e… os teve), por isso sua biografia já bastava para isso.
Mas ao escantear Orson Welles, em prol de engrandecer Mank, o diretor cria sua própria verdade, mas que não passa de uma mentira e isso reduz essa obra significativamente (além de vender uma falácia para quem for às cegas na sessão).
Duelo de gênios em Mank e na vida real
”Cidadão Kane” teve sete tratamentos de roteiro ao longo do seu período de escrita. Mank foi sim o responsável pelo insight e pela escrita da primeira versão – que depois certamente passou e muito pelas mãos sistemáticas e controladoras do jovem gênio que foi Welles, goste Fincher ou não.
Por isso, sequências, como a do chilique no final e da própria última conversa entre os dois, são pura fantasia de um diretor que busca diminuir outro (que tal qual seu pai, caiu nas lorotas de Pauline Kael, praticamente uma teoria da Terra Plana versão sétima arte).
Existem documentos e documentários que provam a verdade dos bastidores e, mesmo assim, Mank é um filme interessante para a história do cinema e vale para os apaixonados por esse período.