O Irlandês, novo longa de Scorsese disponível na Netflix
Épico geracional contempla a velhice e a morte, sem se preocupar em provar nada a mais ninguém
Frank Sheeran, o irlandês do título, líder sindical e assassino predileto da Máfia, conta-nos a sua trajetória em retrospecto, reverenciando a vida em suas fases, enquanto relembra das consequências de seus atos. Apesar de disfarçar bem, ele teme o fim das coisas, a inevitável condição a qual se encontra.
É curioso notar, também, que entre o oceano de nuances que o longa oferece, encontrarmos entre elas, no pecado cristão de seu protagonista, a ironia divina: só ele restou para contar história. E por mais eterna que uma lembrança seja, ela nem sempre sobrevive à memória dos mais jovens.
Martin Scorsese retoma ao gênero que o consagrou, fechando sua trilogia (que não existe, mas a compreendemos assim), iniciada por Os Bons Companheiros e seguida por Cassino, seja na narrativa ou na maneira de filmar. Toda sua identidade é encontrada ali, mas ainda que o filme seja uma reverência aos clássicos e principalmente à terceira idade, o diretor não fica preso ao cinema oitentista. Assim também como não adere a modismos. Ele encontra no meio do caminho soluções interessantes e criativas que servem à produção no sentido de entender a tecnologia como uma ferramenta narrativa dentre várias. E não como um fim em si mesma.
O Irlandês
Portanto, o estranhamento no rejuvenescimento dos atores é tão aparente (mas rápido de se acostumar). Por outro lado, ainda que os efeitos funcionem aqui e ali, os atores por trás da computação gráfica ainda são idosos. Dessa forma, suas falas e movimentações não casam com o que aparece em tela. Nesse sentido, Scorsese conta com a suspensão de descrença de seu fiel espectador para a obra funcionar no que tem a dizer. E não é pouco.
A duração do filme é outro ponto crucial, principalmente para um público moderno, acostumado a narrativas de videoclipe e imediatismos. Despreocupado com o relógio, o diretor investe no tempo de 3h30, para contar a história que imaginou ao lado do roteirista Steven Zaillian. Este adaptou o livro de memórias do investigador e advogado Charles Brandt, “I Heard You Paint Houses”. Sem tropeçar no ritmo, usa da tensão e do imprevisível para elaborar cenas marcantes e repletas de função, neste que é seu filme mais longo (e o mais caro também).
Dentre seus vários trunfos, temos dois ineditismos: é a primeira vez que Scorsese dirige Al Pacino (divertindo-se com seus trejeitos exagerados, no papel de Hoffa, figura trágica e marcante nos anos 60, até hoje sem resolução) e a primeira vez que o quarteto trabalha junto. Joe Pesci foi tirado da aposentadoria, depois de muito custo. É, de longe, a melhor atuação do longa, aqui fugindo de seus papéis costumeiros, como um homem tranquilo e seguro.
Elenco de peso
Robert De Niro, por outro lado, brilha à vontade com seu protagonista simplório, fiel (até certo ponto) e evasivo. O elenco vai muito além deles, é claro, e permite que inúmeros atores encontrem o tom certo, para este, que já nasce como um filme clássico de seu tempo fora do tempo.
Com sequências ora contemplativas, ora sugestivas, e momentos onde os assassinatos alternam entre o sangue digital e o disfarce metafórico através de flores, O Irlandês dialoga com o passado usando as ferramentas do presente, sendo finalmente o acerto de contas entre o quarteto que consagrou o gênero de filme de gângster. A poesia que suplanta toda a obra, afinal, é a de que Frank Sheeran viu sua vida passar diante dos olhos, antes das luzes se apagarem.