Pinóquio, a maior animação da Disney de todos os tempos
Em 1883, cem anos antes de eu nascer, o italiano Carlo Collodi escrevia ”As Aventuras de Pinóquio”, que viria a ganhar centenas de adaptações pelo mundo, sendo a mais famosa lançada em 7 de fevereiro de 1940 (no Brasil chegou dias depois, em 26/02) por Walt Disney, em seu segundo longa animado do estúdio que estava formando e que usou os rendimentos do pioneiro ”Branca de Neve e os Sete Anões” para investir nesse novo projeto, que a princípio não foi tão bem nas bilheterias, por acontecer bem no olho do furacão durante a Segunda Guerra Mundial, e que depois gerou vários lucros em relançamentos e o merecido reconhecimento.
A música do Grilo Falante, “When You Wish Upon a Star”, se tornou um grande sucesso, sendo até hoje um dos maiores símbolos do filme; anos mais tarde, a canção se tornaria a música-tema da própria The Walt Disney Company. O filme ganhou dois Oscar na categoria de Melhor Trilha Sonora Original e Melhor Canção Original por “When You Wish Upon a Star”.
Pinóquio
A história dirigida pela dupla Hamilton Luske e Ben Sharpsteen (apoiados por um longo time de roteiristas) toma algumas liberdades criativas sobre o enredo original (sai o tubarão, entra uma baleia colossal, entre outros detalhes, incluindo o final), que mantém não só toda a premissa, como a essência e oferece todo um encantamento que somente os estúdios Disney seriam capazes de criar, repleto de amor, doçura e gentilezas (sem pieguices), que contrastam com perversão, tentação e maldade, em um equilíbrio constante durante a rodagem.
Cada detalhe da animação merece atenção, dos brinquedos da casa de Gepeto, das sombras que se formam no segundo plano, da água que ondula ou borrifa, do movimento minucioso de cada um dos personagens – tudo em Pinóquio é riquíssimo artístico e tecnicamente, sendo inclusive superior a muitas produções contemporâneas. Foi um dos projetos de amor de Disney e esse sentimento se evidencia em cada frame.
A trama
Pinóquio não se trata de mentiras. O nariz que cresce do personagem a cada lorota contada é apenas resultado de suas ações. Pinóquio é uma história de consequências. A maneira como Disney (ou Collodi) aplica a punição no ingênuo boneco de madeira que quer se tornar um menino de verdade, é assustadora. Não é só nariz crescendo, é também orelha de burro aqui, um rabo ali, um burro de fato então, as origens das cordas de marionete, uma gaiola de prisão, pedra no sapato, afogamento e por aí vai.
Pinóquio é ingênuo e, como todo garoto de 12, 13 anos, durante seu crescimento, experimenta e vive coisas que vão moldá-lo ser alguém no futuro. O personagem fuma, bebe e mente, mas em boa parte não sabe bem o que faz nem a razão daquilo, e paga o preço do mesmo jeito, afinal a vida é assim. Contudo, no clímax, prova o seu valor salvando o pai marceneiro da barriga da baleia (um monstro conceitual, que já foi desafio em Moby Dick, Simbad e nas aventuras de Barão de Munchausen, por ex.), nadando como um triatlo até onde pode. O sacrifício gerou a recompensa pela vida humana, numa pegada quase cristã de renascimento.
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O boneco tem o Grilo Falante como voz da consciência (uma voz amiga, sensata e afável) e a Fada Azul como madrinha, depois irmã e então mãe, uma figura de responsabilidade. Enquanto que Gepeto é o seu pai, criador, seu Prometeu. Na obra original, Pinóquio já é um pedaço de madeira com vida, é um elemento da natureza gritando para viver, no desespero da existência. Isso é muito forte, isso marca qualquer um.
No livro, Collodi faz uma sátira ao tradicionalismo da sociedade italiana e ao comportamento humano, seus vícios e sua insensatez, tornando-se um reflexo rico e movimentado da vida e da época do autor. No filme, Disney flerta com o existencialismo e o capitalismo (o protagonista precisa trabalhar para provar o seu valor), mas ao seguir pelas toadas infanto-juvenis que viraram sua identidade, também pode ser interpretado como um reflexo do ensino fundamental norte-americano, com mensagens claras e efetivas de “cuidado com as más companhias” e “sempre escute seus pais”, em um conto de moralidade simples, preventivo e esquemático, mas que não abre mão de suas sequências sombrias, onde seus vilões jamais são punidos, como João Honesto e Gideão, Stromboli e o Coachman (que a mim é ainda mais assustador do que a baleia Monstra, que nada mais é do que uma força da natureza reagindo às ações). Cenas com as crianças se transformando em burros e isso jamais sendo revertido, me causam pesadelos há mais de trinta anos.
Ambicioso, aventureiro e, por vezes, assustador, Pinóquio representa indiscutivelmente o auge das obras produzidas na Disney, virando marca inclusive em 1º de Abril, o Dia da Mentira, que muitos pequenos remetem a bela sacada do nariz que cresce a cada lorota. Eis aqui uma animação sem igual, lindamente trabalhada e emocionalmente ressonante, que merece ser vista e revista para sempre.
https://www.youtube.com/watch?v=5yFaoOXfSpI&ab_channel=raphaellima